O início do amor por corridas. Foto: Reprodução.

O início do amor por corridas. Foto: Reprodução.

"Lá vem o Marcos, descendo o morro da Vó Salvelina"...

A frase "viralizou", como se diz, no ano de 2014, quando Leandro Beninca despretensiosamente narrou enquanto filmava a descida do primo Marcos - que estava a bordo de um quadriciclo artesanalmente construído -, no sítio da avó Salvelina Lorenzetti Lenzi, no pequeno município catarinense de Taió.

"Taca-le pau, taca-le pau nesse carrinho, Marcos, taca-le pau!", anuncia o pequeno Leandro quando o primo aponta no topo do morro, para uma corrida solo, desembestada.

Oito anos depois deste episódio delicioso, abri as gavetas empoeiradas das minhas lembranças infantis para lembrar aquilo que, presumo, tenha feito eu gostar tanto assim de corridas de carros.

Eu tinha uns cinco ou seis anos, bem antes portanto do meu xará Marcos descer o Morro da Vó Salvelina...

A prima da minha mãe, Diná, casada com o querido Humberto, que nos deixou no auge da pandemia de covid-19, vez por outra convidava minha família, então composta por quatro pessoas, para um fim de semana no sítio da família do Humberto, em Itatiba, interior de São Paulo.

Lá, o Humberto e os irmãos tocavam o negócio, no caso, uma plantação de uvas que ali mesmo se transformavam em um vinho de mesa que era acondicionado naqueles garrafões de cinco litros.

Imagino se tratar de uma fonte complementar de renda, pois pelo menos o Humberto mantinha um rentável comércio de ferro-velho e depósito no bairro do Tatuapé, Zona Leste da capital paulista.

Aliás, aqui abro um parêntese.

Na casa do Humberto e da Diná, no Tatuapé, um terreno gigantesco encravado na Rua Emílio Marengo, também moravam os pais da Diná, o Tio João (irmão da minha avó materna Joana), sua esposa, a doce Tia Irene e a Lourdinha, irmã da Diná, filha deste casal.

Neste imenso terreno, que eu adorava visitar nos aniversários das minhas primas, a Yara, a Yoná e depois a Yndaiá, sempre havia uma bicicleta disponível para a gente brincar de apostar corridas, onde eu e a Yoná sempre éramos os mais velozes.

Na parte da frente do terreno, muitos carros abandonados faziam parte do ferro-velho da família, e eu não me cansava de entrar e sair de cada um deles, fingindo dirigir e trocando marchas naqueles que ainda tinham alavanca de câmbio...

Fechando o parêntese e voltando para o sítio em Itatiba.

A casa era enorme, linda de antiga.

Lembro detalhadamente de sua planta, da cozinha enorme, onde uma vez vi dezenas de corpinhos de rãs já despeladas prontas para deitarem na enorme frigideira de ferro, os inúmeros quartos e banheiros, o corredor que separava os quartos que ficavam um em frente ao outro, como em um hotel, e uma pequena sala, lugar menos frequentado por nós, porque toda a conversa e as risadas provocadas pelas piadas que meu pai contava ficavam mesmo na cozinha.

Também havia um quarto "separado", ao lado da cozinha, onde o colchão era de palha e meus pais uma vez dormiram nele, e outro corredor, este que desembocava em uma sala onde ficavam os enormes recipientes onde o vinho fermentava. Um cheiro que eu detestava, mas era o meu caminho...

Era o meu caminho porque minhas primas tinham um Velotrol, o triciclo mais desejado daqueles saborosos anos 70, e eu simplesmente amava aquele veículo onde apostava corrida comigo mesmo, como se imitasse um piloto no traçado de Mônaco, com suas estreitas ruas e curvas fechadas.

Talvez você, leitor (a), tenha imaginado a cena do menininho andando com seu triciclo no obrigatório filme "O Iluminado", de Stanley Kubrick. 

Sim, há alguma semelhança...

Mas, além do "Principado", havia um outro lugar divertidíssimo para andar de Velotrol:  no meio do parreiral.

Entre cada "rua" de parreiras formavam-se corredores em um terreno íngreme, com enorme desnível entre o topo e a base, já em frente ao alpendre da casa.

Era ali que a minha diversão ganhava corpo.

Meu coração já palpitava de emoção antes mesmo do meu pai descer do Fusca e abrir a porteira, bem distante da casa, quando estávamos chegando ao sítio.

E, de fato, ali havia uma competição.

Mesmo sem cronômetro, meu irmão mais velho improvisava a leitura dos tempos em seu relógio Seiko azul.

Meu pai, em um Natal, o primeiro em que eu soube da verdade (ou mentira) sobre o Papai Noel, dera este Seiko azul para o meu irmão, e um Orient cor de vinho para mim, que guardo como um tesouro até hoje.

Com seu Seiko azul em mãos, meu irmão dava o sinal e, principalmente eu e a Yoná, do alto do morro, descíamos com o Velotrol, como o meu xará Marcos fez em 2014 no Morro da Vó Salvelina...

Umas vezes eu, outras a Yoná, saíamos vitoriosos.

Ela era destemida como eu e não freava o Velotrol na descida.

Entendam como "frear", o ato de colocar os pés no chão de terra para reduzir a velocidade... 

Desconfio que meu amor por corridas de carros, sacramentado pelo "golpe de misericórdia" do primeiro GP de Fórmula 1 que me lembro com mais vigor, que assisti no meu quarto, na minha TV Baby Empire cor de laranja, a decisão do Mundial de 1976 em Fuji, no Japão, imortalizada na película "Rush", no fundo nasceu naquelas descidas no morro do sítio do Humberto, e também nos corredores daquela casa.

De verdade, tudo o que aconteceu na minha vida depois daquilo, foi menos importante.

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