Um amigo do meu pai, o Alberto, tinha uma casa em Caraguatatuba.
Era uma casa térrea, estilo chalé suíço, enorme e linda, com portas e janelas de madeira envernizadas.
A frente era toda gramada e havia um espaço na parte lateral para uns quatro ou cinco carros.
Na varanda, ampla, ganchos para pendurar duas redes.
Eu sempre andava com uma bola debaixo do braço ou, quando não estava assim, estava controlando a dita cuja, fazendo embaixadinhas infinitas, uma habilidade que espantava, que começara lá pelos meus quatro anos de idade.
Em Super 8, tenho umas imagens marcantes desta varanda.
Eu ali, fazendo embaixadinhas, e meu pai me dando uns "cascudos" de leve... Ele havia pedido para que eu não jogasse bola naquele lugar, temeroso que eu quebrasse alguma vidraça...
Foi, digamos, uma varanda da discórdia, entre mim e o meu querido pai.
Ele tinha lá a sua razão, fui desobediente.
Mas eu nunca quebraria nada, eu era bom (ainda sou) com esta habilidade futebolística.
Vou parar de lançar confete para mim e jogar no meu saudoso pai.
Íamos para Caraguatatuba em uma espécie de troca que meu pai fazia com seu amigo Alberto.
Meu pai emprestava o apartamento da Praia Grande para ele, esposa e filhos e minha família se acomodava na casa dele em feriados prolongados.
Em uma dessa vezes fomos para lá com a companhia de um tio e uma tia.
No porta-luvas da Caravan Comodoro bege, placas FU-8536, um atualizado "Guia 4 Rodas", nosso Waze da década de 80 que servia de cicerone para nossos passeios.
Meu pai era inquieto, queria conhecer tudo.
Uma noite, na sala, ficou elaborando o roteiro do dia seguinte: sairíamos de Caraguá, atravessaríamos as mais de 70 praias de Ubatuba com destino final em Paraty, já em areias cariocas.
Acordamos cedo e lá fomos nós, em cinco na Caravan, meu pai, minha mãe eu e meus dois irmãos, e no Corcel vermelho do meu tio, ele e minha tia.
Querem um exemplo do quanto meu pai era legal?
Ele ia na frente e não deixava meu tio pagar os pedágios.
Também não aceitava rachar a conta com nenhum dos seus convidados.
Mais que isso, meu pai era amável com todos, independente das despesas que fazia questão de assumir.
No caminho, no toca-fitas TKR, dial sintonizado na ótima Rádio Oceânica FM, que segue firme e forte até hoje, sem ter se rendido às rimas fáceis do sertanejo ou alocada às pregações religiosas dizimistas.
Repertório de MPB pra lá de bom, com Tim Maia cantando "O Descobridor dos 7 Mares", Lulu Santos afiado na guitarra com sua "Tudo com você" e meus queridões Kleiton & Kledir derramando poesia com "Paixão", "Nem Pensar" e "Viva".
"Tudo com você" apertava o meu coração.
A menina da blusa de nylon lilás do meu colegial tinha falado que iria morar nos Estados Unidos, e eu ficava com os olhos marejados com aquele trecho da canção que diz: "Não vá para Nova York amor, não vá..."
Chegamos antes das 9h em Paraty e o dia estava carrancudo.
Céu nublado e garoa fina, o que deixou a impressão de que as suas praias não eram tão encantadoras como as outras que eu já havia conhecido, principalmente as de Ilhabela.
Almoçamos em um restaurante chamado "Palhoça", uma casa antiga como todas as de Paraty, branca com janelas azuis. Comi lasanha à bolonhesa, destoando de todos à mesa, que mergulharam numa caldeirada de frutos do mar.
Paraty me deu a sensação clara de que a qualquer momento eu veria o maquiavélico Leôncio correndo atrás da pobre Isaura, ávido para lhe dar umas chibatadas. Parece cenário de novela mesmo.
Sem muito a fazer por lá, tomamos sorvete na praça principal depois do almoço e em seguida deixamos aquelas ruas de paralelepípedos úmidos para trás, e voltamos para Caraguá.
Considerando que meu dia havia sido praticamente perdido, peguei a bicicleta do filho do Alberto logo que chegamos em casa e fui dar uma volta pela cidade, desde a Praia do Indaiá até a Praia da Freira, trajeto que venci em uns 20 minutos.
Praia absolutamente deserta, areia de pedrinhas minúsculas e quase sem ondas.
Um pôr do sol alaranjado digno de cartão postal.
Deixei a bicicleta encostada em uma árvore, dei uma volta pela pequena orla e fui presenteado com a beliscada de um caranguejo.
Pequena beliscada, mas suficiente para furar o dorso do meu pé e provocar um pequeno sangramento.
Lépido, o caranguejo saiu andando de lado, como todos os caranguejos.
Como sou canceriano, nem fiquei com tanta raiva do meu bichinho zodiacal, afinal era eu o intruso, aquele que invadiu o seu espaço.
Água salgada cura quase tudo, e em pouco tempo o sangue parou de verter e meu machucado estava resolvido.
Pedalei sem problemas no regresso para casa, já anoitecendo.
Depois do jantar fui para a varanda, a varanda da discórdia entre mim e o meu pai.
Esperto, desta vez não fiquei fazendo embaixadinhas por ali...
Deitado na rede, munido de outras duas paixões, papel e caneta, escrevi o poema com o qual fiquei em segundo lugar no concurso de poesias do Gonçalves Dias.
Uma história de amor, tendo como musa inspiradora a menina da blusa de nylon lilás.
Ah, para não dizer que não falei de automobilismo hoje, acho que Max Verstappen é um piloto caranguejo.
Enquanto estiver na Red Bull vai ficar andando de lado, por mais talentoso que seja.
Eu o acho mais talentoso que Lewis Hamilton, inclusive.
Apenas não tem em mãos um carro com o pedigree da Mercedes.
Está na hora, ou já passou, deste moço guiar para uma equipe que lhe dê chances para ser campeão.
Ou pelo menos vice, como eu fui, graças à poesia que nasceu com um pôr do sol em Caraguatatuba.
Com tons de laranja e lilás...
ABAIXO, "TUDO COM VOCÊ", NA INTERPRETAÇÃO DE SEU AUTOR, LULU SANTOS
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