É inegável a importância do cuidado psicológico no esporte de alto nível atualmente. Com estudos cada vez mais aprofundados, a psicologia do esporte é uma realidade em diferentes modalidades. O cuidado com questões emocionais dos atletas no futebol, porém, começou há mais de meio século. E quando foi levado para a seleçnao brasileira, quase causou um grande estrago.
O uso da psicologia no futebol surge nos anos 50 com Helenio Herrera, um argentino que fez carreira como treinador na Europa, passando por times na França, Espanha e Itália (onde teve seu trabalho mais marcante dirigindo a Inter, onde conquistou três campeonatos italianos e duas Ligas dos Campeões). Herrera foi pioneiro no trabalho em aspectos que transcendem o campo e a bola: pontos como a preparação física, descanso, nutrição e psicologia faziam parte das preocupações do treinador que era um perfeccionista absolutamente exigente.
Quando, no final da década de 50, trabalhou no Barcelona, por exemplo, Helenio Herrera viu que os barcelonistas se sentiam inferiores ao Real Madrid, que já mandava no cenário europeu. O comandante, então, tratou de cuidar da autoestima da equipe onde conquistou dois títulos espanhóis.
SELEÇÃO BRASILEIRA VIU NA PSICOLOGIA A SAÍDA PARA SUPERAR TRAUMAS
Foi com a histórica seleção brasileira de 1958, porém, que a psicologia no futebol se aprofundou. O curioso é que o uso dessa ferramenta mais atrapalhou do que ajudou o time campeão mundial na Copa disputada na Suécia.
O Brasil de 58 até hoje é marcado por ter sido uma das equipes mais bem preparadas da história das Copas. Capitaneada por Paulo Machado de Carvalho, que chefiou a delegação brasileira que foi à Suécia, a seleção montou uma comissão multidisciplinar para auxiliar o técnico Vicente Feola na preparação para o mundial. A delegação contava com médico, dentista, preparador físico, tesoureiro, um espião e um psicólogo: Doutor João Carvalhaes.
Os fracassos em Copas anteriores - especialmente no mundial de 1950, quando o Brasil viveu o grande trauma de sua história ao perder para o Uruguai o jogo decisivo em pleno Maracanã - , levaram a direção da seleção a se preocupar com questões psicológicas – o jogador brasileiro, de maneira geral, tinha fama de instável e amarelão; especialmente os atletas negros carregavam essa marca na época.
O VETO A PELÉ E GARRINCHA
Acostumado a avaliar candidatos a motoristas de ônibus, Carvalhaes realizou diferentes testes com jogadores convocados para a Copa. Logo nas primeiras avaliações, o psicólogo concluiu que Pelé, então com 17 anos, era um atleta infantil e não possuía senso de responsabilidade suficiente para um jogo coletivo. Já avaliação de Garrincha foi além. O Anjo das Pernas Tortas tirou uma nota 38 de 123 nos testes (com essa pontuação, o camisa 11 daquela seleção seria reprovado no teste para dirigir ônibus na época) e o psicólogo concluiu que Mané não tinha condições de enfrentar jogos de muita pressão.
Pelé e Garrincha ficaram fora dos dois primeiros jogos da Copa – é verdade que não apenas por esse motivo, Pelé, por exemplo, tinha um problema físico e Feola ainda não tinha convicção de qual seria o ataque titular.
Na estreia, diante da Áustria, o Brasil foi a campo com Gilmar, De Sordi, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Dino Sani e Didi; Zagallo, Joel, Dida e Mazzola; no final, vitória verde e amarela por 3 a 0 com uma atuação apenas mediana. Na segunda partida, diante da Inglaterra, uma substituição na equipe: saiu Dida, contundido, e entrou Vavá; o placar final foi um empate sem gols que gerou uma avalanche de críticas e muita preocupação. O terceiro jogo seria decisivo então, e o Brasil precisaria vencer a União Soviética para garantir classificação.
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MESMO VETADA, DUPLA ENTRA NO TIME E MUDA A HISTÓRIA DO BRASIL PARA SEMPRE
Às vésperas do jogo, novos testes feitos por Carvalhaes. Após entregar papel em branco nas mãos dos atletas, pediu para que cada um desenhasse o que lhes viesse à cabeça: Garrincha desenhou uma circulo com raios ao redor, algo parecido com o sol e, quando questionado pelo psicólogo, disse que o desenho tratava-se da cabeça de Quarentinha, atacante e seu companheiro de Botafogo. A resposta surpreendeu Carvalhaes que sugeriu o vetar o Anjo das Pernas Tortas para o jogo decisivo – o curioso é que outros nove jogadores foram reprovados para esse jogo; Feola, entretanto, ignorou a orientação e escalou Pelé, Garrincha e Vavá no ataque, ao lado de Zagallo (o time teve mais uma mudança: saiu Dino Sani e entrou Zito no meio campo).
Os primeiros minutos de Pelé e Garrincha juntos naquela Copa foram históricos. Feola queria que o Brasil surpreendesse os soviéticos, intimidando-os com a qualidade técnica dos brasileiros – a orientação a Didi era para que o primeiro passe fosse para Garrincha, acreditando que o camisa 11 faria um estrago com os rivais. O Brasil abriu o placar aos 3 minutos com Vavá e, para muitos, os momentos que antecederam o primeiro gol brasileiro foram os maiores três minutos da história do futebol.
Com mais um de Vavá na segunda etapa, o Brasil venceu os soviéticos por 2 a 0 – embora o que se diz é que o placar não condisse com o espetáculo apresentado pelo escrete verde e amarelo. O restante da história todos nós conhecemos: a seleção avançou, passou pelo País de Gales, França nas quartas e semifinais respectivamente, e goleou a Suécia por 5 a 2 na grande final, conquistando assim o primeiro título mundial de sua história.
Reza a lenda que em meio às avaliações, Pelé chegou ao Doutor Carvalhaes e afirmou “você pode até estar certo, mas não entende nada de futebol”. Curiosamente com os “reprovados” Pelé e Garrincha juntos em campo, a seleção brasileira jamais foi derrotada: foram 40 jogos, com 36 vitórias e quatro empates; juntos, marcaram 55 gols: Pelé, 44, e Garrincha, 11. Pelo visto o Rei tinha razão.
Vídeo: confira as imagens do embarque da seleção para a Copa de 1970
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