FELIPE PEREIRA
DO UOL, EM SÃO PAULO
Falando com Deus
Ele pôs a mão forte em mim e levantou da cama lá pela uma da manhã. Andou até o banheiro e caiu. Quando caiu, vomitou sangue e não levantou. Não parava de vomitar sangue.
Eu não sabia o que estava acontecendo. Sabia que era grave, mas não sabia o quanto. Ele olhou para mim, mas falou com Deus: “Agora não, Deus." Olhou para cima. "Não agora que eu a encontrei."
Ele era médico, entendeu o que estava acontecendo. Ficou apavorado de aquilo ser o momento da morte. Não foi. Foi assustador, mas não a morte. Foi só o começo do meu adeus ao meu marido. O nome dele era Sócrates...
Sócrates conhece Kátia
David Cannon/Allsport - retirada do UOL
Meu nome é Kátia Bagnarelli e tenho uma empresa de comunicação. Um ano antes da Copa do Mundo de 2010, intermediei sete palestras do Sócrates para a Microsoft. A imagem que eu tinha dele era a de um excelente atleta e uma pessoa difícil. Mas ele não era nada do que eu tinha imaginado.
Assinamos o contrato às 15h e ele disse: preciso comer. Ficamos exatamente quatro horas conversando. Sobre tudo: poesia, política, literatura, música...
Quando levantou, ele disse o seguinte: “Da próxima vez eu trago um laço”. Gente do céu! Eu entendi o que ele estava dizendo, mas, ainda assim, perguntei: “Um laço?” Ele falou que o laço para era para me laçar. Nããão...
Eu trabalhei muito com futebol. Trabalhei com muitos homens admiráveis e não admiráveis do meio esportivo. Sofri muito com assédio, desde o começo. Sofria assédio de todas as formas. Inclusive de superiores femininas. Com 19 anos, estava em rede nacional. Depois, fui trabalhar na Federação Paulista de Futebol. Eu o julguei. E muito. Na primeira palestra, em Ribeirão Preto, fugi do laço o máximo que pude.
Conquista e casamento
David Cannon/Allsport - retirada do UOL
A segunda palestra foi no Rio. Dessa vez, não deu para fugir. Ele tinha um compromisso com a faculdade de Lisboa e cancelou na última hora. Pediu para o filho me chamar para um jantar na cobertura do hotel. Depois, falou de um boteco lá no Leblon.
Era quase meia-noite, mas ali não tinha horário. O taxista deve se lembrar até hoje. Sócrates pediu para dar uma volta na Lagoa Rodrigo de Freitas para recitar uma poesia. Foi bonito, fofo. Ali pegou um pouquinho o coração. Mas virou piada para o taxista, para o filho dele e para um amigo que também estavam no carro.
Na volta ao hotel, pegamos o elevador. Quando meu andar chegou, ele abriu os braços e segurou a porta: daqui eu não passo. Só se você quiser. Eu quis. Acordei cedo, mas ele não acordava. Meu Deus do Céu! Como vou explicar ao cliente? Vou pegar o microfone e anunciar: “A gente foi para um bar ontem, dormimos juntos e alguém precisa resgatar Sócrates que está lá no meu quarto”.
Mas ele acordou e foi um sucesso. Retornou a Ribeirão, pegou o carro e foi para Campinas no mesmo dia. Só com uma mochila. Bateu no meu apartamento, pegou uma cadeira, me colocou sentada no sofá e disse: "Não me deixa ir embora, por favor”.
Meu primeiro encontro com a nova família foi numa festa de aniversário do irmão mais novo de Sócrates, em Ribeirão Preto. Dona Guió, a mãe, se dedicou a narrar inúmeras aventuras amorosas de Sócrates. No momento da foto em família, ganhei um abraço e ela disse sorrindo: “Acho melhor você não sair nessa foto porque em breve ele vai estar com outra”.
Nota da redação
Antes de morrer, Sócrates escrevia uma autobiografia ao lado de Kátia. Abaixo, um trecho inédito, em que ele fala de álcool.
Sócrates admite que é alcoólatra
"Eu tive um problema hepático possivelmente decorrente do exagero do uso de álcool. Tive o primeiro sangramento, fiquei três meses sem usar, mas mesmo assim a coisa aconteceu. Explodiu.
Eu era um alcoólatra. Quem usa álcool cotidianamente é alcoólatra. Eu bebia um pouco de manhã e à tarde. Da hospitalização para frente foi abstinência total, com apenas chance de equilibrar o fígado doente e não caminhar para o pior.
Para a juventude, digo que vocês estão numa idade que isso se torna preocupante. Não quero que vocês passem por isso. Quero que encarem o álcool como uma droga terrível. Passei por três hemorragias consecutivas nos últimos três meses, mas por enquanto está resolvido. Pelo menos, é o que eu espero.
Se ainda assim o fígado não aguentar, eu não tiver mais tempo e o quadro agravar caminharemos para o transplante. Espero que este não seja o fim."
"Teu passado é uma bandeira, teu presente, uma lição
Relação com a bebida
Sócrates não conseguia mais beber cerveja há muitos anos. Uma pessoa da família contou que ele já tinha tido uma crise hemorrágica bem leve. Foi hospitalizado, fez aquela bateria de exames de praxe. Ele levou um susto. Passou a beber vinho. Duas taças todo dia. Às vezes, bebia uma garrafa.
Sócrates não ficava inconveniente, o que eu acredito que seja um limitador. Quando um pai de família fica chato e incomoda, é automaticamente excluído. Alguém vai lá e cuida. Sócrates, mesmo bebendo muito, conseguia manter conversas e divertir o ambiente. Não tinha um fim porque era agradável estar com aquele homem. A coisa ia se estendendo porque ele gostava desse ambiente social.
Só compreendi a gravidade da coisa quando ele foi hospitalizado. Claro, a gente sabe que o álcool faz mal. Mas eu não tinha a menor ideia de como esta doença pode atingir o ser humano. E não havia ninguém da família, nem do círculo de amigos, que pudesse me alertar.
O primeiro coma
Em nenhum momento eu pensei que ele iria morrer. Até o último dia. É até engraçado. Mas na primeira crise, minha pressão caiu quando o vi no chão, vomitando sangue.
Fiquei de 2h30 da manhã até às 6h sentada no chão do hospital. Ele vomitava coágulos. É difícil até falar. É quase um filme de terror. Mas não fui a única que passei por isso. Todo mundo que tem esta doença passa.
Eu, sentada ao lado dele, com um saquinho plástico. Ele, vomitando. Hora ele se cansava, hora vomitava. E era vômito de sangue sempre. Eu fiquei muitas horas. E não foi uma vez. Foram várias vezes em três meses. Foram cinco comas. E antes de cada um acontecia tudo isso. Sempre o mesmo cenário.
Um dos irmãos dele, o mais velho, o Sóstenes, chegou um dia em que pingava sangue no chão. Ele perguntou se aquilo era normal. Virei para ele: “É o que acontecia em casa. É o que acontece aqui”.
"Foi nesse momento que percebi o quanto era difícil para um irmão ver o Sócrates daquele jeito. E eu também parei para perguntar: Como é que eu estou aguentando?
Três meses sem beber
David Cannon/Allsport - retirada do UOL
No Brasil, existe uma lei que diz que qualquer paciente só pode entrar na fila do transplante se estiver seis meses em abstinência do álcool. Espero que um dia mude. Mas enfrentamos isso. A gente tinha uma obrigação de parar. Zero de álcool. Ele ficou três meses sem beber.
Foi aí que ele começou a falar sobre o problema. Deu uma entrevista para o Serginho Groisman para falar para a molecada não fazer o que ele fez. Foi a primeira vez que assumiu que era alcoólatra. Ele nunca havia conseguido dizer que era dependente. Por sorte, ele não tremia. Graça a Deus.
Mas o que nós não podemos fazer é olhar com desprezo para pessoas como o Sócrates porque ele bebia. Aconteceu muitas vezes. Até hoje acontece. Ele não está mais vivo e, em alguns lugares, ainda tem gente que agride, rotula de bêbado.
Até hoje, no núcleo familiar, é uma questão difícil. Ele bebeu mesmo. E se você tiver vergonha disso...
Últimas aparições
Foto: Carol Soares/SBT - retirada do UOL
Nesse período, a gente teve que mudar muita coisa. Dos compromissos regulares, ele só conseguiu continuar escrevendo para a Folha de São Paulo e para o Agora. Ele também participou de alguns programas de televisão para falar da doença. Normalmente, as pessoas vinham até aqui. A gente aceitava desde que com acompanhamento médico.
A Ana Maria Braga fez um link ao vivo porque ele não tinha condições de viajar para o Rio. A Marília Gabriela insistiu muito. Sentiu que ele estava partindo. Foi um dos programas mais completos da vida dele. Uma narrativa linda, do início ao fim, que ela conseguiu tirar do Sócrates. Em toda a entrevista, ele lidava com 40 graus de febre. Estava super mal.
Eu administrei medicamento e tentei chegar ao SBT como se nada tivesse acontecido. Eles perceberam o quanto a situação era difícil. Nós também fizemos o Cartão Verde até o último dia.
Em casa, era fisioterapia diária, porque ele ficou muito parado. Fazíamos caminhada até o último dia. Isso entregou alguma qualidade de vida no período em que ele ficou isolado.
Sócrates era médico. Sabia tudo que estava acontecendo com o corpo dele. Só que não me falava do horror que viria a acontecer. Eu nunca tive medo, exceto no final. Não sei explicar racionalmente o que é. Era como se alguma força superior estivesse me preparando inconscientemente para o final. Sem drama.
Entrevista Escondida
Nessa mesma época, ele estava sendo muito agredido. Para parte da sociedade ele era um bêbado que estava na fila do transplante. Era um famoso que ia passar na frente das pessoas. Ele estava muito confuso. Não sabia se devia assumir que era alcóolatra ou falar sobre a fila de transplante. Nós tínhamos um contato com o Renato Peters, que trabalhava para a Sportv.
Quando Sócrates voltou do terceiro coma, pediu para ligar para o Renato. “Quero falar”. Só que jornalista não podia subir, o hospital tinha proibido. O Renato pediu que eu subisse com a câmera e avisou que entraríamos ao vivo com o Willian Bonner no Jornal Nacional.
Eu filmei durante anos, mas tremia porque sabia que estava fazendo algo errado. O Sócrates começou a rir da situação. “Chama o Renato e, se der problema, eu resolvo”. Imagina: com soro e tudo. Eu dei um jeito para o Renato subir e ele mesmo filmou.
"Sócrates falou: “Eu não vou entrar na frente de ninguém. Estou na fila de espera”.
Despedidas
Foto: Jorge Araújo/Folhapress - retirada do UOL
Sócrates não queria ver o Casagrande, mas ele foi o primeiro amigo a chegar ao hospital. Foi muito bonito, não pude recusar. Chegou às 23h, era proibido entrar. Sócrates estava com um sangramento muito alto e corria grande risco de infecção. Pedi ao Casa para voltar às 6 horas da manhã. Ele ficou com medo: “E se não der tempo?” Foi quando os dois reataram.
O Casagrande foi o primeiro. Depois dele, Sócrates começou a pedir para ver os amigos. O que eu vou falar é cruel para algumas pessoas que ficam fora da lista, mas ele começou a se despedir de quem era importante para ele.
Ele procurou José Trajano, Washington Olivetto, Mino Carta, Fagner, Zeca Baleiro, Otávio Augusto, Paulo Cézar Caju, Ugo Giorgetti. Com o Zico, o encontro foi muito bonito. Ele queria agradecer por ter passado uma vida ao lado dessas pessoas.
Mas, 15 dias antes da morte, ele recebeu uma visita da mãe e de um irmão. Tiveram uma conversa bem difícil. Ele passou a noite inteira chorando. Nesse momento, Sócrates deu uma enfraquecida.
Última noite
Uma semana depois, foi hospitalizado. Entre um exame e outro, recebemos uma ligação. Era o Zico. O Galinho, como Sócrates o chamava. Foi o primeiro a saber da última internação. Ele conversou apenas comigo e disse que ligou para convidar Sócrates para um jogo beneficente no Morumbi. Pedi que rezasse por nós e ele respondeu: “Não vai ser nada não, ele vai sair dessa outra vez. Pede para ele me ligar”. Dei o recado. Como era típico, Sócrates respondeu sorrindo: “Linda, avisa o Galinho que eu não jogo bola faz tempo”.
O Gilvan Ribeiro, que escreveu a biografia do Casagrande, também ligou e comecei a chorar. Ele chorou do outro lado do telefone. Acho que sentiu que era mais sério desta vez.
Sócrates estava mal, mas falou: “Linda, vai chorar agora? Você segurou até aqui. O doutor não falou que eu vou ver o jogo do Corinthians aqui no hospital, mas vou pra casa depois?” Me deu uma dura.
Dor em silêncio
Foto: Rubens Cavallani/Folhapress - retirada do UOL
Essa conversa foi às 19h. Às 4h25, aconteceu. Eu lembro da sequência de eventos com detalhes. Primeiro entrou o infectologista. Feliz, falou com o Sócrates sobre o Corinthians, que seriam campeão naquele fim de semana. Chutaram o resultado. O médico disse que tinham identificado a bactéria e que o antibiótico que tinham ministrado três dias antes era o certo. “Fica tranquila que em sete dias ele vai para casa”.
Três horas depois, começou o terror. Uma pneumologista de plantão deu uma medicação e ele entrou em coma induzido. Teve sangramento nasal e foi feita a cauterização na madrugada. Eu acompanhei. Depois disso, ele não voltou.
A partir das 2h, a pressão já era de 3 por 2. O coração estava a 30 batimentos por minuto e, de repente, disparava para 200. O cardiologista se aproximou e falou: “Kátia, ele está só esperando você se despedir”.
Como é que eu ia me despedir se ele saiu tantas vezes de situações assim? Eu acreditava que ele ia conseguir. Só que o quadro era outro e eu não saquei. Eu estava muito angustiada, não pensava e não me despedia. Às 4h25, o médico insistiu: “Kátia, faz isso por ele. Porque ele não vai embora enquanto você não se despedir”.
Sócrates estava com a mão grudada na minha. O médico tirou. A única coisa que eu consegui foi dizer: “Descansa amor, descansa”. Quando terminei, parecia filme. O monitor zerou e surgiu um silêncio que nunca existiu na UTI. Acredito e sempre acreditei no "RESSURGIR DO FEMININO" em nossa sociedade e com urgência, ambiente onde homens e mulheres são complementares e não rivais, competitivos. Sócrates e eu vivemos tudo o que tínhamos para viver. Acabou... e quanto ao legado, depende de todos e cada um de nós. Ele foi um homem do povo, assim sempre será.
Nota da redação
Raí chegou meia hora depois. Comunicou que a família levaria o corpo para Ribeirão Preto. Kátia não foi consultada. Exausta, voltou para casa sozinha. Não acompanhou o enterro.
Arte: Elias Fernandes; Depoimento: Kátia Bagnarelli; Edição: Bruno Doro, Felipe Pereira, Vinícius Mesquita.