Tradicional clube de Praga se opôs ao regime comunista na antiga Tchecoslováquia. Foto: Facebook/Divulgação

Tradicional clube de Praga se opôs ao regime comunista na antiga Tchecoslováquia. Foto: Facebook/Divulgação

Era meio de primavera na Europa, o calor já deveria dar as caras ainda que lentamente, mas fazia frio em Praga, na República Tcheca. A temperatura beirava os 12 graus e, conforme o fim de tarde se aproximava, o frio aumentava. Mas nada disso impedia que apaixonados torcedores carregando cachecóis vermelhos e brancos embarcassem nos bondes em direção ao Sinobo Stadium, na região leste da capital, para ver o seu time do coração em mais uma batalha.

Praga é uma cidade tão bonita quanto antiga, e olha que ela é muito antiga. Em meio a monumentos históricos, como a Torre de Pólvora, a Ponte Carlos e o Castelo de Praga, o Sinobo Stadium esbanja modernidade, com uma fachada vermelha, com fotos gigantes de ídolos históricos do Slavia. O adversário naquele fim de tarde gelado era o Pardubice, equipe que brigava contra o rebaixamento, enquanto os donos da casa lutavam pela liderança com o Viktoria Plzen.

Aquela noite terminaria feliz, com o Slavia Praga assumindo (temporariamente) a liderança da liga tcheca, do mesmo modo que ocorreu em todas as últimas temporadas, quando o clube da capital figurou na briga pela taça. Em um passado mais distante, no entanto, esse cenário foi bem diferente e durante meio século a equipe vermelha e branca, afetada por acontecimentos históricos na antiga Tchecoslováquia, foi só mais uma em meio a clubes medianos do país.

O GIGANTE TCHECO QUE ALCANÇOU A EUROPA

Quando fechou a temporada 1946/1947 conquistando pela 14ª vez o campeonato tchecoslovaco (somando o período amador e a Era profissional), o torcedor do Slavia Praga que tanto festejou aquela conquista mal poderia imaginar eu os anos seguintes seriam de muito sofrimento e de uma seca que duraria meio século.

Fundado por estudantes universitários, na cidade de Praga, em 1892, o Slavia viveu anos gloriosos nas primeiras décadas do século XX. Até 1947, o clube dos intelectuais da capital conquistou 13 títulos do campeonato da antiga Tchecoslováquia, e levantou a taça da histórica Copa Mitropa, na temporada 1938 (torneio também conhecido como Central European Cup, um torneio interclubes jogado por equipes da Europa Central, que reunia times da Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Iugoslávia e Itália. Até a criação da Liga dos Campeões, a Mitropa era a taça europeia mais importante do Velho Continente).

 Time do Slavia Praga campeão da Mitropa em 1938. Foto: Site oficial/Slavia Praga

A origem do clube, muito ligada aos intelectuais de Praga, logo fez com que o Slavia se tornasse o time da classe literária da cidade. Enquanto isso, o grande rival, o Sparta Praga, que tinha uma origem mais ligada às classes proletárias, se tornou o time dos trabalhadores.

Veio então o fim da Segunda Guerra Mundial e a Tchecoslováquia passou por uma grande transformação que mudou para sempre a história do Slavia.

CINQUENTA ANOS DE COMUNISMO E DE SECA

Em setembro de 1945 foi colocado um ponto final dos conflitos da Segunda Guerra Mundial. A Europa iniciava um novo período da sua geopolítica e, sob fortíssima influência da União Soviética, em fevereiro de 1948, membros do Partido Comunista da Tchecoslováquia (KS?), aliados de Moscou, chegaram ao mais alto escalão do governo, iniciando naquele momento a ditadura comunista que durou até o fim dos anos 80.

Lembra-se que o Slavia era o clube fundado por estudantes e que se tornou o time dos intelectuais de Praga, e que até então se colocava como a grande potência da Tchecoslováquia? Pois nesse contexto o Slavia se tornou um lugar de contestação ao regime totalitário, se opondo à ditadura imposta pelos comunistas.

Coincidência ou não, iniciava-se ali, então, o período mais difícil da história do clube: durante o meio século em que o comunismo reinou na Tchecoslováquia, o Slavia não conquistou nenhum título de expressão. O até então maior campeão do país ficou sem taças e amargou dois rebaixamentos. E enquanto isso, o Sparta, seu grande rival, alcançou 34 títulos nacionais.  

Em 1989, cai o regime comunista e o Slavia começa a se levantar. Em 1993 vem mais um acontecimento histórico na região: a dissolução da Thecoslováquia, criando dois estados independentes, a República Tcheca e a Eslováquia. Com isso, cria-se também uma liga tcheca (Gambrinus Liga) e, três anos depois, em 1996, o clube vermelho e branco volta a conquistar um título nacional, levantando a taça da liga tcheca depois de 49 anos de espera.

A FRIEZA DO TORCEDOR E DO ESTÁDIO DO SLAVIA

A beleza do Sinobo Stadium é inversamente proporcional ao ambiente no estádio. E se o futebol é um reflexo da sociedade, a atmosfera do estádio do Slavia ilustra muito bem o povo tcheco.

Em cerca de uma semana na belíssima e antiguíssima cidade de Praga, a percepção adquirida foi de um povo fechado, mais seco e frio do que o que estamos acostumados. Quando a bola rolou para Slavia e Pardubice, no dia 10 de abril de 2022, esse pré-conceito dos dias anteriores se confirmou. Um estádio com cerca de 70% de sua capacidade preenchida, mas que assistia ao bom jogo feito pelos donos da casa quase que em silêncio.

 Jornalista Lucas Reis no estádio do Slavia Praga, o Sinobo Stadium. Foto: Arquivo Pessoal

Ao mesmo tempo em que não cornetavam o time nos minutos iniciais de dificuldade (pois é, o Slavia Praga não tem sua “turma do amendoim”), os torcedores vermelhos também passavam longe de ser o que chamamos de 12º jogador, e pouco empurravam o time.

Nem a pressão incansável da equipe sobre o fraco rival fez com que a torcida aumentasse a temperatura do estádio. Durante 90 minutos, quem quisesse conversar tranquilamente com a pessoa ao lado sem alterar o tom de voz, o faria sem maiores problemas e certamente seria entendido.

Aos 41 minutos do primeiro tempo, após longo período martelando a defesa do adversário, o Slavia conseguiu pênalti. Quando Lukas Provod, principal jogador da equipe tcheca, cobrou com o pé esquerdo, deslocando o goleiro e abrindo o placar para os donos da casa, veio o momento de maior surpresa para um brasileiro naquelas arquibancadas: o grito de gol dos torcedores foi acompanhando de cachecóis girando e o play numa música eletrônica, que por 30 segundos transforma o estádio numa balada. Algo totalmente incomum para quem está costumado com comemorações quentes, em alguns casos até um pouco bélicas nos gols do futebol brasileiro.

 Meia Lukáš Provod, de 25 anos, marcou dois gols na vitóia do Slavia sobre o Pardubice, em abril de 2022. Foto: Facebook/Divulgação

A música eletrônica tocou mais três vezes no Sinobo Stadium naquela noite. O Slavia venceu por 4 a 0 e se manteve vivo na briga pelo título tcheco.  No final da temporada, no entanto, quem se deu bem foi o Viktoria Plzen, que terminou com o título, encerrando uma sequência de três conquistas consecutivas do Slavia.

Quem viu a brilhante seleção tcheca do início dos anos 2000, que contava com Peter Cech, Pavel Nedved, Milan Baros, Tomáš Rosický e Jan Koller, certamente não se encanta com o futebol tcheco de hoje. É verdade que a seleção local se enfraqueceu e o campeonato tcheco está longe de produzir grandes craques. 

Mas a verdade é que, mesmo estando alguns patamares abaixo das principais ligas e sem conseguir produzir um ambiente verdadeiramente "de estádio" em sua casa, o Slavia entra em campo carregando uma grande história que ultrapassa as quatro linhas do Sinobo Stadium. O clube de Praga é um representante de pelo menos parte de sua cidade, que é um museu a céu aberto e casa de grandes intelectuais (o principal deles, Franz Kafka). Não dá para esperar que todas as torcidas serão quentes e älucinadas". A frieza de Praga e de parte do povo tcheco é perfeitamente ilustrada nas arquibancadas do povo tcheco, que, ao seu modo, ama futebol. 

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