E partiu o trem levar a granfinagem ao encontro da cidade invisível, aquela que só aparece nas tragédias do noticiário. Chacoalhou por 50 quilômetros um PIB de respeito para ver o Corinthians jogar

E partiu o trem levar a granfinagem ao encontro da cidade invisível, aquela que só aparece nas tragédias do noticiário. Chacoalhou por 50 quilômetros um PIB de respeito para ver o Corinthians jogar

O céu de chumbo, o vento e a chuva que não veio remoeram um certo tom de nostalgia na tarde do último domingo. Há quanto tempo São Paulo se despediu do ritmo moroso da cidade antepassada? Os mais velhos ainda vasculham na memória em busca de uma Época de Ouro, quando os dias pareciam menos afobados e os passantes ofereciam um bom-dia cúmplice. Indiferente ao mais remoto que se procure, a verdade crua é que a vida sempre foi dura por aqui. Mentira?

São Paulo, metrópole insone, encobre o nome e os rostos daqueles que a construíram brutal. Quem vai negar que foram os calos em mãos pobres, desesperadas e esperançosas os responsáveis por concentrar, sustentada pela infinita tonelagem de concreto, a riqueza em tão poucas mãos? Mãos de outros, claro.

Nordestinos, em sua maioria. Seduzidos pelo Eldorado ilusório que regaria de fartura a ressequida vida sertaneja. Antes deles, os pretos, os italianos, e tantos homens e mulheres de cores e origens incertas e misturadas. Arribaram aos magotes, lustrando a capital com a saudade da terrinha: a música, os sabores, o idioma. Puseram-se a mourejar, sem fazer muxoxo. E espremidos pelo arrocho vil das regras do cascalho – do quem tem mais, pode mais – abundaram-se pelas franjas paulistanas, seguindo o curso dos rios, das várzeas, do desprezo. Cada vez mais longe do Centro e dos benefícios da modernidade, se arranjaram do jeito que deu – abandonados pelos demagogos de plantão, expulsos pela ganância dos arranha-céus.

Naquele domingo nostálgico, o mundo se pôs de ponta-cabeça. O rico chorou, o pobre riu. O trem, que no comum dos dias, esvazia o subúrbio inverteu a marcha. Carregou seus vagões com passageiros abonados. Nos compassos de Adoniran, chacoalhou por 50 quilômetros um PIB de respeito: do Centro para a margem, ver o Corinthians jogar.

Das janelas do comboio, a cidade acenava com a melancolia da garoa. Sua estatura diminui à medida que ela se espicha em direção ao oriente: os edifícios rareiam, o horizonte se exibe sobre os telhados, cuja silhueta parece desenhada por um arquiteto bêbado. Os clichês que traduzem a periferia se acentuam quando se vai mais a leste – Guilhermina, Patriarca, Artur Alvim... Itaquera: as pipas, as crianças baldias, os carros obsoletos, a cachorrada. Uma alegria compulsória no asfalto desbotado de verde-amarelo, em contraste com o fundo ocre da alvenaria aparente do casario.

E partiu o trem levar a granfinagem ao encontro da cidade invisível, aquela que só aparece nas tragédias do noticiário. O futebol fez mais esse favor: unir, na fórmula manjada de um Karl Marx vulgar, o capital ao trabalho; dessa feita, na ordem invertida dos fatores. Foi o subúrbio que abriu as portas para os bem-nascidos se admirarem da São Paulo que sobrevive atrás dos muros; testemunharem com os olhos que o chão há de comer o que foi feito da nossa gente.

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Foto: UOL

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