São Paulo, 1956 - Em pé: o treinador Vicente Feola, Riberto, Sarará, Bonelli, Turcão, Alfredo Ramos e Mauro. Agachados: Maurinho, Lanzoninho, Gino Orlando, Dino Sani e Canhoteiro.

"O DIA DO PROSCRITO?

No Campeonato Paulista de 1956 o São Paulo batera na trave.

Circunstâncias misteriosas e até hoje não esclarecidas marcaram a decisão daquele certame; o Bem Amado depois de uma campanha impecável nos dois turnos enfiou uma antológica goleada no poderoso Palmeiras, fazendo 5 x 3, e esperou o Santos, ainda sem Pelé, como favorito para decidir quem ganharia o título no Pacaembu.

Zezinho, o centroavante artilheiro do campeonato daquele ano estava impossível, o São Paulo tinha ainda Dino Sani, tinha Maurinho, tinha Gino, tinha Mauro, tinha Poy, tinha De Sordi, tinha Alfredo Ramos, "O Polvo?, tinha Riberto, e tinha o mágico Canhoteiro na ponta-esquerda, era difícil achar alguém que se atrevesse a dizer que o tricolor deixaria escapar a vitória no jogo final mas o certo é que, tendo vencido a etapa inicial por 2 x 1, o favorito levou uma estranha virada no segundo tempo com falhas incríveis do goleiro reserva Bonelli, que substituiu o titular Poy, contundido, e perdeu por 2 x 4.

O resultado é que Bonelli, diretamente culpado pelo fracasso de 1956, foi mandado embora do clube e, no início de 1957, o São Paulo se preparou para montar o esquadrão que iria recuperar o cetro paulista com memorável campanha, inesquecível para os devotos.

Vicente Feola foi substituído provisoriamente por Caxambu, antigo goleiro são-paulino, enquanto a diretoria trabalhava intensamente para inovar, para ousar, para fazer história trazendo o técnico Bella Guttman, um húngaro que não falava uma só palavra em português mas que entendia tudo da linguagem universal da bola e que iria revolucionar o ambiente futebolístico mundial.

Bella Guttman chegou e pôs o elenco para treinar com bola. A imprensa ficou atônita quando assistiu ao primeiro coletivo dirigido pelo gênio magiar. Bella Guttman escalou o time titular com quatro zagueiros, dois homens no meio campo e quatro atacantes; era uma fórmula tática ousada e jamais vista no mundo!

Naqueles tempos românticos o meio do campo tricolor era formado por Sarará e Dino Sani aos quais competia marcar e acionar o ataque. Sarará e Dino eram titulares absolutos do time que perdera em 1956, Bella Guttman pretendia modelar aqueles jogadores ao seu figurino tático de jogar bola.

Dino Sani estava no clube desde 1954, era o meia armador, o pensador, ostentava forma brilhante, era amado pela torcida. Dino fazia o jogo fluir e ia à frente, anotava gols de cabeça, de falta, atirava de longe, batia pênaltis, era completo.

Olavo Souza Flores, o gaúcho Sarará, chegara em 1956 e em meio ao campeonato ganhara a posição de titular como volante. Fruto das raças negra e loira, ele era uma espécime humana ruiva na aparência, que chamava a atenção de todos e dentro do campo era de uma tranqüilidade que incomodava.

Sarará adorava driblar. Quando lhe passavam a bola, o rapaz saía enfileirando os adversários, tinha uma técnica apuradíssima, enfeitava, sabia enfeitar, era bonito ver Sarará jogar, ele era o protótipo do jogador clássico, que embelezava o jogo.

Bella Guttman no entanto tinha seus inusitados planos para o elenco. O inolvidável treinador, desde o primeiro coletivo, comunicou aos jogadores que com ele ninguém daria mais do que três passos com a bola nos pés, era receber a bola, dar dois passos e tocar para o companheiro, nada de firulas, futebol era o jogo da simplicidade.

O diabo é que Sarará não largava a bola, prendia, entortava o adversário, vestia, penteava, perfumava a bola para depois soltá-la...

De pronto se iniciaram as rusgas entre Sarará e o técnico Bella Guttman. Bella parava o treino cada vez que Sarará dava mais de três passos com a pelota, apitava alto, se esgoelava em húngaro, em inglês, em francês, e qual o que, Sarará, no lance seguinte, repetia suas escaramuças estéticas com a bola e assim foi até que o técnico, depois de inúmeros amistosos, já no início do Torneio Rio São Paulo de 1957, que antecedeu ao Campeonato Paulista, num treino, foi à loucura. Depois de advertir Sarará uma dezena de vezes sem resultado, Bella o expulsou, estava farto de não ser ouvido. Sarará saiu calmamente do campo, não era de sua índole discutir, sequer aquele sinal característico de menear a cabeça em sinal de protesto ele fez, foi para o vestiário e se calou.

Bella Guttman chamou Ademar, um médio marcador, duro na queda, e o colocou como titular ao lado de Dino.

Ademar passou a se revezar com Antônio Rosa, outro volante de contenção que não municiava com arte o ataque, Alfredo Ramos, lateral esquerdo, foi testado na posição, o jovem Esnel também atuou algumas vezes pelo setor sem convencer e até o lendário Bauer, com a carreira praticamente encerrada, chegou a ocupar o posto mas não tinha mais gás para jogar; Bella Guttman repetia que, quando acertasse o meio campo, o São Paulo seria imbatível. Mas como acertar se não se encontrava um médio para compor o setor com o gênio Dino Sani?

O Torneio Rio-São Paulo foi perdido, as experiências se sucediam, veio o então cobiçado Campeonato Paulista.

O campeonato começou e durante todo o primeiro turno o São Paulo não achou um médio-volante que soubesse jogar, o que se queria era arte com simplicidade no setor, como é difícil reunir essas duas virtudes no futebol!

Bella Guttman era um incansável cientista. Em certo coletivo ele resolveu fazer uma inédita experiência: recuou o cerebral Dino Sani para a posição carente e testou o garoto Celso, que vinha treinando bem entre os reservas, como titular da camisa dez.

O tricolor vinha entre os primeiros no disputadíssimo certame de 1957, nos últimos jogos do turno inicial Dino passou a ser volante, Celso fazia com ele a dupla de meio campo.

Houve empate contra a Portuguesa por 2 x 2 no dia em que o esquema foi testado, depois Dino adaptou-se como uma luva à posição e mesmo jogando um pouco mais atrás passou a fazer gols, a torcida gostou, o certo é que o time jogou quatro partidas e ganhou as quatro. Bella Guttman queria mais. Se Dino Sani andava dando shows como volante, Célio não era Dino como meia armador, era bom jogador e só. Dino era acima da média!

Então planejaram a bombástica contratação de Zizinho, o "Mestre Ziza?, que era, na ocasião, o "Rei do Rio?, embora em final de carreira.

Todos sabem como se deu a contratação de "Mestre Ziza?, eu mesmo já escrevi sobre essa aquisição do craque carioca que se tornou em apenas dois anos um dos maiores astros da história do São Paulo FC.

Zizinho chegou, substituiu Célio e formou com Dino Sani o meio campo dos sonhos de Bella Guttman e de todos os devotos de São Paulo, eram dois gênios juntos, arte mais pura aliada a uma deliciosa simplicidade que fazia delirar o povo!

O São Paulo desandou a golear, não mais havia adversário que segurasse o atrevido e mundialmente inédito esquema 4/2/4, inventado pelo húngaro Bella Guttman. Com os dois astros, Dino Sani e Zizinho no meio campo, o São Paulo fez 4 no Palmeiras, 7 no XV de Piracicaba, 6 (sim 6!) no Santos de Pelé, em plena Vila Belmiro, 6 na Ponte Preta e 5 no Jabaquara. 28 gols em 5 jogos!

Assim decorreu o segundo turno do Campeonato Paulista de 1957. Goleada sobre goleada até o fatídico dia 15 de dezembro daquele ano, quando o Bem Amado foi enfrentar a Portuguesa Santista, em Santos, no estádio Ulrico Mursa.

O São Paulo venceu a partida duríssima por 3 x 2, com um gol de Maurinho, "A Flecha?, e dois de Gino, "O Tanque de Guerra? mas Dino Sani, a elegância personificada, se contundiu gravemente.

A três clássicos da final (o líder teria Portuguesa, Palmeiras e Corinthians pela frente) o time sensação da América perdia um baluarte, como se virar sem Dino na meia cancha exatamente na reta decisiva?

Bella Guttman escalou de novo Ademar, o volante xerifão, o reserva imediato de Dino, para enfrentar Portuguesa e Palmeiras, a Lusa foi vencida por 3 x 1 com gols de Zizinho, Amauri e Maurinho, o "Choque-Rei? foi disputadíssimo, Maurinho fez o gol que nos deu a vitória pela contagem mínima mas esses jogos mostraram que, com Ademar a defesa se fortalecia mas o meio campo ficava sem a qualidade que marcara a campanha do segundo turno; Ademar era todo defesa, não era o grande maestro dos passes perfeitos, não tinha a liderança do titular e não ia à frente para decidir, como Dino.

Estabeleceram-se dias de angústia nas hostes tricolores. Tudo era incerteza e insegurança.

De 22 a 29 de dezembro o São Paulo teria uma semana, exatos sete dias, para resolver a temerosa situação. Ao Corinthians, na última rodada do campeonato, no "Majestoso? que se avizinhava e que já monopolizava a cidade e o Brasil inteiro, só restava uma alternativa: vencer o São Paulo para levar o título, seria um jogo de arrepiar.

Todos haviam acompanhado a performance corintiana no Campeonato Paulista, o Corinthians era garra, era raça, sua torcida compareceria em peso ao Pacaembu, iria empurrar o time contra um São Paulo virtuoso, que mais parecia uma orquestra de violinos com seu meio campo solista de Dino e Zizinho. Mas "intra muros?, a direção são-paulina já sabia, Dino não jogaria, não era dúvida, era certeza, não jogaria; Ademar seria suficiente para suprir, no embate decisivo, a tormentosa lacuna que a ausência de Dino proporcionava?

Bella Guttman fechou os treinos para o público e para a imprensa. Pairava um mistério no ar do lado tricolor. Para animar os devotos dizia-se que Dino estava recuperado enquanto nos treinos Ademar, seu substituto natural, se mostrava nervoso, hesitante, sem confiança.

O técnico húngaro fez experiências de última hora, tentou Celso como volante, não dava, tentou Ney, outro menino que às vezes entrava no setor, nada o convencia, o time todo entrou em polvorosa.

Foi aí que Mestre Ziza, Mauro, Poy, Gino, Canhoteiro e o próprio Dino, os líderes do elenco, faltando três, quatro dias para aquele "Majestoso do Século? fizeram uma comissão e foram falar com o "professor?. Reuniram-se com o treinador após um dos últimos coletivos e, em nome do conjunto e da própria vitória, que parecia estar escapando pelos dedos, pleitearam, de forma incisiva e vigorosa, a reintegração de Sarará, o driblador, o homem do enfeite ao time!

Sim, os líderes do elenco ponderaram com Bella Guttman, apelaram para o bom senso do chefe, prometeram que brecariam as firulas do ruivo, Sarará era a solução! Sarará estava afastado há muito, desde o primeiro turno treinava em separado, junto dos juvenis, a imprensa não mais se lembrava dele, a torcida já o esquecera, Sarará, "O Proscrito? era a única solução para devolver a qualidade ao meio campo do São Paulo.

Bella vacilou. Até ele, o comandante, o idealizador do mágico esquema 4/2/4, que dependia de técnica apurada e incontestável, se olvidara naquela altura do mulato loiro que lhe dera tanto trabalho no começo da temporada com seus dribles humilhantes e com sua fartura de filigranas que arrancavam suspiros da própria bola.

Os líderes convenceram o técnico, Bella aquiesceu, no começo à contragosto, depois não resistiu, mandou chamar Sarará, não o encontraram, o homem ficava à vontade, não tinha compromissos, não jogava, se até quando atuava Sarará já tinha a cabeça mais fria do mundo, imaginem então naquela ocasião, quando não estava nem aí com a hora do Brasil!

À noite encontraram por fim Sarará na casa onde ele morava, a diretoria o levou diretamente à concentração, Bella Guttman o recebeu, o abraçou, trocaram doces sorrisos, a paz foi selada, Sarará faria companhia a "Mestre Ziza?no meio campo na grande final contra o Corinthians no fim da semana.

Há muito tempo sem jogar, não pensem que Sarará demonstrou apreensão ou nervosismo em qualquer momento. Não. Sarará, "O Proscrito?, tinha nervos de aço. Os companheiros o saudaram, o técnico disse-lhe palavras de estímulo, a tudo ele reagiu com o mais frio e indiferente sorriso de que se tem notícia.

No domingo que se seguiu, The Dearest entrou em campo num Pacaembu abarrotado de gente. Poy, De Sordi e Mauro, Sarará, Victor e Riberto; Maurinho, Amauri, Gino, Zizinho e Canhoteiro foi o "onze? que adentrou o gramado para fazer história e para vencer inapelavelmente o "Majestoso do Século? por 3 x 1, com gols de Amauri, Canhoteiro e Maurinho e show de bola inesquecível do imperturbável Sarará, que substituiu gênio Dino Sani e escreveu seu nome entre os grandes.

Naquele dia, Sarará fez de tudo em campo. Não errou um passe, foi à frente, cabeceou, lançou bolas preciosas e marcou com fúria. Há quem sustente que Sarará tenha sido o melhor homem em campo.

No fim do jogo, quando o São Paulo já vencia por 3 x 1, bem em frente ao banco de reservas tricolor, onde estava de pé o técnico Bella Guttmann protestando aos brados pelo fim, Sarará saiu enfileirando os adversários com seus dribles curtos, para delírio da torcida, prendendo a bola que parecia colada aos seus pés. Cansou de driblar, até o apito final.Terminada a batalha, Bella foi o primeiro a invadir o campo, correu atrás de Sarará para abraçá-lo, os companheiros em seguida o carregaram em triunfo, a torcida em uníssono gritou seu nome das arquibancadas. O médio apenas sorriu com seu imutável semblante de mármore.

Sarará estava vingado perante a história.

Era um dia para entrar nos anais sagrados da epopéia tricolor, era o "DIA DO PROSCRITO? que se transforma agora em mais uma das "HISTÓRIAS QUE A BOLA CONTOU?.

Paz, meus iguais.

DR SÃO PAULO

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