Felipe Pereira
Do UOL, em São Paulo
Felipe Lages se move no ringue tipo passarinho, aos pulinhos e numa velocidade frenética que faz imaginar o quanto pulou corda para aguentar o ritmo. O menino de 14 anos luta de olhos arregalados enquanto mira a cabeça do adversário na final até 42 quilos do Campeonato Paulista Infantil de boxe, ocorrido ontem (24) no Centro Olímpico de São Paulo. Na luta seguinte, a caixa de som dá fim ao frenesi.
"Comunico a chegada do nosso eterno campeão Éder Jofre", homenageado por completar 83 anos hoje, 25 de março.
A comoção é tão grande que interrompe o campeonato. Até o locutor, a presidente da Federação Paulista e a mulher que cuida do cronômetro deserdam de seus postos na mesa da organização. Correm para receber a maior lenda do boxe nacional.
Éder Jofre não tem mais a mobilidade de passarinho. Caminha na mesma velocidade de quem usa andador. Logo arranjam uma cadeira e ele é cercado de mimos e flashes. O ex-bicampeão do mundo é só sorrisos. É uma pena que no dia seguinte, ele não vai lembrar de nada.
Andrea Jofre, 50 anos, a filha que abriga o pai em sua casa há alguns anos, explica que Éder Jofre levou tantas pancadas na cabeça que não tem mais memória recente. A doença foi vilã ao ponto de apagar quase por completo as lembranças de sua carreira.
Mas ser ovacionado em um campeonato em que competem moleques de 13 e 14 anos prova que os outros não esqueceram. É o brilho eterno de um campeão sem lembranças.
Andrea prefere dizer que atualmente o pai vive o presente. Ela revela que conversavam que hoje é aniversário de 83 anos e houve surpresa por parte de Éder Jofre em saber que está com idade tão avançada. "Eu tenho tudo isso? Como?", questionou. Na cabeça do ex-bicampeão mundial, seria algo em torno dos 50 anos de idade.
Sobre a carreira, ela fala que ficaram fragmentos. Perguntar sobre um adversário, uma luta ou título é pedir para ficar no vácuo. Éder Jofre não lembra de nada. Andrea diz que a conversa só funciona quando começam a contar as histórias. Nestas ocasiões, o ex-pugilista tem lampejos e faz comentários complementando o relato.
E histórias não faltam. Éder Jofre foi campeão mundial em duas categorias diferentes e eleito o melhor peso galo de todos os tempos. O prestígio é tão grande que pugilistas que defendem o título dos galos por cinco vezes consecutivas recebem o cinturão de supercampeão denominado Éder Jofre.
Ele é o único brasileiro no Hall da Fama do boxe, sediado nos Estados Unidos. Também foi incluído na lista dos 10 melhores lutadores de todos os tempos, elaborada pela revista especializada "The Ring", em escolha ocorrida no ano de 2002.
A mesma publicação colocou Éder Jofre como o melhor lutador da década de 1960, quando Muhammad Ali também lutava. Na carreira, foram 81 lutas, com 75 vitórias, sendo 50 por nocaute, além de quatro empates e apenas duas derrotas. Ele nunca foi nocauteado.
A carreira é digna de homenagens nos maiores palcos de boxe do mundo, mas no domingo o local era muito mais raiz. Embaixo da arquibancada do campo do Centro Olímpico não há alojamento para jogadores juniores de futebol, como é costume nos centros de treinamento. Há o ringue de boxe da academia que leva o nome do pai de Éder Jofre - José Aristides Jofre. O ambiente não tem ar-condicionado ou qualquer tipo de luxo.
As frases fixadas no quadro revelam os valores da academia. "O sofrimento do corpo fortalece o espírito". "Deus perdoa, o adversário não". "Aqui nascem os campeões da vida. Os covardes desistem da vitória". As fotos de campeões enfeitam as paredes. Dez delas são de Éder Jofre.
A doença que faz Éder Jofre esquecer suas glórias é a encefalopatia traumática crônica, antes chamada de demência pugilística. O ex-atleta sofre com esquecimentos e confusões desde a década de 1990, mas nada que fosse considerado grave. O quadro piorou de maneira severa em 2013 com a morte de Cidinha, sua mulher.
A perda levou à depressão e Jofre foi tratado contra mal de Alzheimer. A situação esteve tão feia, que pessoas próximas acreditaram que não haveria volta. Andrea teve medo do pai ter desistido de viver depois da perda de Cidinha.
"Foi o único nocaute que levou na vida. Ele ia dormir chorando e acordava chorando".
A doença fez a imagem da mulher ficar no ostracismo da memória junto com as lembranças dos pais. Ajuda a não sofrer no dia a dia, mas tem um lado ruim. Quando pergunta sobre os parentes, Éder Jofre fica sabendo que morreram e sofre de novo. Andrea sofre duas vezes: por ver o pai triste e pela confusão mental.
Tirando este problema, Éder Jofre vai muito bem. Andrea conta que nos próximos meses o inverno vai deixar todos em casa com a cabeça zureta e o nariz escorrendo típico dos resfriados. Isso nunca acontece com o pai dela. Doenças crônicas como hipertensão e diabetes também não apareceram. Com exceção do problema na memória, tudo funciona no organismo dele.
Mas tem coisas que nem a doença apagou. Éder Jofre é vegetariano desde o século passado. Um dia, a filha ofereceu carne imaginando que comeria sem contestar. Deu ruim. A paixão pelo São Paulo também permanece, e o ex-campeão reclama cada vez que os jogadores ficam tocando a bola de lado. "O gol é para frente", reclama como qualquer torcedor.
A mente ainda guarda carinho pelo boxe e qualquer luta desperta a atenção. Éder Jofre assiste aos combates televisionados e gravações de suas lutas e outros nomes consagrados. Um dos mais vistos é Mike Tyson, que falou várias vezes ter moldado seu jeito de lutar a partir do estilo do brasileiro.
No ano passado, os cinemas e a Rede Globo exibiram "10 Segundos para Vencer", filme que conta a história do bicampeão mundial. O perfil de Éder Jofre nas redes sociais foi inundado por pedidos de fãs que queriam ir à casa do ex-lutador fazer fotos e pegar autógrafos. Seria tanta gente que atrapalharia a rotina da família - Andrea diz que o pai gosta de uma soneca.
Para atender ao público, uma academia de boxe ofereceu o espaço para uma tarde de autógrafos. A data ainda está em definição. Manter-se no meio do esporte faz muito bem ao ex-pugilista. Questionado se queria ir embora depois da homenagem no domingo, foi categórico em falar não.
O ambiente de onomatopeias do boxe o agrada, e muito. Éder Jofre fez cara de muito interessado quando um técnico passou orientações ao pupilo. "Joga para trás e plow, plow, plow", dizia o treinador dando soco no ar, enquanto caminhava como Michael Jackson fazendo "moonwalk". O conselho final ao lutador vem no mesmo estilo de imitar sons de socos. "Quando entrar, é jab, direto: pá, pá, pá".
Éder Jofre ficou até o último combate. O assédio e carinho de lutadores e técnicos também faziam brotar sorrisos que atestavam que domingo foi um dia feliz. Na segunda, tudo foi apagado. Mas não tem problema. Éder Jofre vive o hoje e contou que adora bolo de aniversário. Nesta terça é dia.
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