De Morten Soubak no handebol,a Béla Guttmann no futebol: treinadores gringos impulsionaram o esporte brasileiro

De Morten Soubak no handebol,a Béla Guttmann no futebol: treinadores gringos impulsionaram o esporte brasileiro

Poucas vezes na história o Brasil debateu tanto a presença de estrangeiros trabalhando no esporte do país. Especialmente no futebol, o assunto se tornou alvo de muitas discussões: a atuação de nomes como Jorge Sampaoli, que desde o início de 2019 treina o Santos, e, de Jorge Jesus, que assumiu o Flamengo no mês de junho, deu ainda mais evidência ao tema e gerou questionamentos. O futebol brasileiro precisa de técnicos estrangeiros? O que alguém vindo de fora pode ensinar ao país cinco vezes campeão mundial? Nossos treinadores estão mesmo defasados?

Mais recentemente, a CBF anunciou a sueca Pia Sundhage para o comando da seleção feminina de futebol, acreditando que a treinadora bicampeã olímpica e vice-mundial com os Estados Unidos poderá fazer pelas meninas brasileiras o que poucos profissionais locais foram capazes.

A tradição e as conquistas históricas do país no futebol dificultam o debate. Boa parte dos treinadores e ex-treinadores tupiniquins, além de uma parcela significativa da imprensa, torcem o nariz e bradam: não há nada que os gringos podem nos acrescentar. Por puro preconceito? Por uma reserva de mercado? Por medo que um estrangeiro faça um grande trabalho e evidencie a incapacidade dos profissionais locais? O motivo pode variar. A verdade é que o esporte brasileiro viveu exemplos claros de como um profissional vindo de fora – quando qualificado, óbvio – pode agregar muito valor em sua área de trabalho. Na história recente, confederações de diversos esportes buscaram em nomes gringos a excelência para alavancar as modalidades e tiveram êxito. Até mesmo ao o futebol já nos deu bons casos de sucesso de estrangeiros em terras tupiniquins.

 

Como um italiano e um espanhol mudaram a história da canoagem brasileira

No Brasil, a canoagem é um esporte relativamente novo. Para ter ideia, a confederação nacional da modalidade tem apenas 31 anos de fundação. Como, então, um país sem tanta tradição no esporte pode angariar resultados significativos em pouco tempo? Importando mão de obra estrangeira é a resposta. Desde sua formação, em 1988, a CBCa buscou em profissionais estrangeiros a solução para alavancar a canoagem brasileira e, três décadas depois, colhe os frutos desse investimento.

Os principais nomes da modalidade no país hoje são Ana Sátila, da canoagem slalom, e Isaquias Queiroz, da canoagem velocidade. Além das conquistas internacionais recentes, os dois têm um ponto em comum: ambos cresceram e alcançaram feitos históricos sob o comando de treinadores estrangeiros.

Atleta mais nova na deleção brasileira nos Jogos de Londres 2012 – com apenas 16 anos de idade -, Ana Sátila é a atual campeã mundial Sub-23 de canoagem slalom e acumula feitos dignos de aplausos na modalidade, como título mundial entre adultos. De 2012 a 2016 Ana foi treinada pelo italiano Ettore Ivaldi. Sob o comando do treinador estrangeiro a mineira evolui e se consolidou no esporte

“O Ettore é como um pai pra mim e me ajudou desde o início da minha carreira. Foi um dos meus primeiros técnicos e me acompanhou por cinco anos, então, além de treinador foi uma inspiração. A cada dia de treino, ele me levava para um patamar diferente dentro e fora do esporte”, afirma Ana Sátila valorizando o trabalho de Ivaldi não só com ela, mas com toda a modalidade no país. “Ele desenvolveu a canoagem brasileira, hoje todo o esporte tem muito a agradecer a ele pela competência, trabalho e esforço”, completa.

Mais velho que Ana, Isaquias Queiroz foi além. Aos 25 anos o canoísta baiano acumula três medalhas olímpicas, três medalhas em Jogo Pan-Americanos, e sete medalhas em campeonatos mundiais (sendo quatro ouros). Um nome foi essencial para o desenvolvimento e a consolidação do fenômeno Isaquias: Jesús Morlán. O espanhol fez história em terras tupiniquins. Exigente, disciplinador e detalhista, Morlán, que faleceu em novembro de 2018, vitima de um câncer no cérebro, lapidou Isaquias e outras joias da canoagem brasileira.

“Lá no início buscamos estrangeiros pra formar treinadores e atletas. Culminou, com a chegada do Ettore em 2012 e do o Jesús em 2013. Foram os dois últimos estrangeiros e que deram o refinamento necessário, e agora seguimos o legado com treinadores brasileiros que seguem os ensinamentos e dão continuidade ao trabalho”, destaca João Tomazini Schwertner, presidente da CBCa.

 

O argentino que reconquistou a competitividade do basquete brasileiro

A seleção brasileira masculina de basquete viveu um pesadelo por 15 anos. Fora de três Olimpíadas consecutivas, a equipe só voltou a disputar os Jogos em Londres 2012, sob o comando do argentino Rubén Magnano. A frente da equipe verde e amarela a partir de 2010, Magnano não só recolocou o Brasil nas Olimpíadas, como comandou a equipe até um honroso quinto lugar, com chance real medalha naquela edição dos Jogos. O argentino permaneceu no Brasil para o ciclo olímpico de 2016 e dirigiu o time nos Jogos do Rio de Janeiro, onde a seleção não passou da primeira fase.

Apesar de não ter conquistado títulos relevantes, Magnano deixou um legado no basquete verde e amarelo: a recuperação da competitividade da seleção.

 

O milagre dinamarquês no handebol feminino do Brasil

Poucas vezes o Brasil viu uma história tão bonita como a conquista do título mundial de handebol conquistado pela seleção feminina do país. Um título histórico que até hoje emociona quem acompanhou aquela campanha. O treinador responsável pelo resultado inesquecível e que mudou o patamar do país na modalidade foi Morten Soubak. Dinamarquês, o técnico assumiu a seleção brasileira de handebol em 2009 – anos antes comandou o Pinheiros, onde foi campeão brasileiro -,  e no comando verde e amarelo conquistou dois ouros em Jogos Pan-Americanos (2011 e 2015) e em 2013 atingiu o momento máximo do handebol brasileiro com o título mundial na Sérvia.

“O Morten é um cara muito bom” destaca o ex-jogador da seleção brasileira de handebol, professor de educação física, coordenador de esportes do colégio Bandeirantes e comentarista dos canais ESPN, Carlos Alberto de Simone. “O Handebol brasileiro sempre adotou a escola espanhola, mas não era o que funcionava aqui. O Morten trouxe então a escola dinamarquesa que se encaixou perfeitamente com aquele grupo de jogadoras”, explica. “É um treinador muito determinado e simples. O handebol dele é muito simples, mas de muita eficiência. E isso não é fácil. O handebol brasileiro não tinha identidade e ele criou essa identidade”, completa.

Professor De Simone destaca os principais pontos do trabalho de Morten a frente da seleção que chegou ao título mundial: “Ele (Soubak) buscou criar referências na seleção, antes as jogadores mais novas mal sabiam quem eram as jogadoras mais velhas, e o Morten criou essas referências; defensivamente o Brasil passou a marcar no sistema 6x0, antes tínhamos uma defesa muito aberta e ele resolveu isso com uma marcação muito agressiva; melhorou muito nosso contra-ataque, antes aqui no Brasil sempre no primeiro passe alguém batia a bola no chão, isso fazia muita diferença e ele melhorou esse ponto; melhorou o arremesso de 9 metros, não tínhamos tanta eficiência nesse arremesso, time que não converte arremesso não ganha jogo e ele fez com que o time evoluísse muito nisso; e passou a utilizar muito mais nossas pontas, tanto que a Alexandra Nascimento, que é ponta, cresceu muito e se tornou a melhor jogadora do mundo”.

O comentarista dos canais ESPN valoriza demais a experiência de profissionais estrangeiros trabalhando no Brasil e destaca que o intercâmbio agrega novas ideias. De Simone destaca, porém, que no caso do handebol o legado deixado por Morten Soubak é quase zero: “tudo que ele fez foi zerado quando não deram continuidade ao trabalho, tanto que contrataram um treinador espanhol. Algumas meninas permanecem jogando, mas a filosofia foi trocada”, diz.

 

A passagem efêmera do húngaro que revolucionou o futebol brasileiro e ajudou na conquista de 1958

Béla Guttmann está na história do futebol especialmente por ser o treinador responsável pelo Benfica bicampeão da Liga dos Campeões da Europa em 1961 e 1962. Anos antes, porém, o treinador húngaro visitou rapidamente o Brasil e, por aqui, marcou a história, não só de um clube, mas do futebol jogado no país.

Treinador do São Paulo no ano de 1957, Guttmann fez mais do que conquistar um histórico título Paulista batendo o Corinthians na final por 3 a 1. No tricolor paulista, o húngaro implantou o sistema 4-2-4, esquema tático revolucionário na época – o esquema preponderante até então era o W-M, com 3 jogadores na defesa, 2 no meio e 5 no ataque. Bela Guttmann contava com um auxiliar em sua comissão técnica: Vicente Feola, nome que comandaria a seleção brasileira na primeira conquista verde e amarela em Copa do Mundo, em 1958. Influenciado pelo húngaro, Feola montou o Brasil no 4-2-4 e levantou o caneco no Mundial disputado na Suécia.

Além de Guttmann, outros nomes estrangeiros foram importantes e trouxeram coisas novas ao futebol brasileiro no passado. No final dos anos 30 (antes da passagem de Guttmann), o Flamengo buscou outro húngaro: Dori Kurschner, um dos grandes responsáveis pela consolidação do sistema W-M (uma evolução do sistema 2-3-5) no futebol tupiniquim – a formação proposta por Kurschner inspirou a montagem da seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1950, sob o comando de Flávio Costa. É importante citar ainda o nome de Ramón Platera, uruguaio que se tornou o primeiro estrangeiro a dirigir a seleção brasileira e, anos mais tarde comandou ainda Flamengo, Fluminense e Vasco.

 

O que a experiência do esporte brasileiro (em diversas modalidades, inclusive o futebol) mostra é que o país pode crescer com o conhecimento e a qualificação de quem vem de fora. O profissional que tiver a humildade e a capacidade para absorver os ensinamentos daqueles que vêm de outros países, assim como fez Feola com Guttmann, ou como fizeram os treinadores da canoagem brasileira com Jesús Morlán e Ettore Ivaldi, certamente se destacarão no futuro. Acreditar que o know-how gringo pouco agrega ao país é um erro, não só dos profissionais do esporte nacional, mas também da mídia especializada.

Foto: CBHb/Divulgação

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