“Trila o apito, o árbitro. Com a sua permissão, a Gorduchinha rola solta no seu rádio, na sua vida, nas suas emoções. Não tem “gueré gueré”. Se você acordar numa segunda-feira sem o pique da Globo, é fogo no boné do guarda!” Era assim a cada jornada esportiva; a energia de uma voz em ritmo frenético e sorriso sonoro ecoava no bairro, casa a casa, invadindo as ruas e criando assunto no bar do Dão. A cada tacada certeira, cada batida no pife-pafe, era um “é isso aí, garotinho! Você é um animaaaaalll”.
A voz vinha acompanhada por sinais, notas musicais em ritmo de samba para anunciar as escalações, os árbitros “de olho no apito”; vozes em coral chamado repórteres e comentaristas, não sem antes as duas notas no piano que antecediam... Oooooosmaaaaaarrr Santos! Era a primeira página de um livro de contos com poesia. Num dia era o Jojô Beleza, apelido dado a Jorge Mendonça, noutro era a vez do tamanduá bandeira, alcunha de Sérginho Chulapa; ele dava apelidos até a quem já tinha. Mais tarde, criou sobrenome para Edmundo, do Palmeiras. Levando o povo ao jogo e o jogo ao povo, por meio da sua linguagem, das suas gírias, da sua malícia.
O Brasil vivia a ditadura (sim, vivia e era duro, violento, opressivo) há anos; duas dezenas de anos, na cabeça desse povo, tumultuando meu povo. Qual melhor forma de resistência senão a legenda de um grande gol. E que gol! O drible era gancho para pedir liberdade, uma tabela era motivo para conclamar a troca de ideias e união, a ponte linda de um goleiro, a exaltação da defesa do direito de pensar. Falado em prosa e verso fluido nas ondas dos 1100AM da Rádio Globo, temperado a “Que bonito é” e outras canções populares que eram o ambiente de espetáculo sonoro.
Doce mistério da vida, Osmar Santos; quis o destino que, na estrada que leva, você fosse parado. Há mais de 20 anos, aquela palavra fácil não massageia mais o ego da galera, embora os artilheiros continuem a colocar a menina lá, onde ela mora. “Põe lá que é lá que ela gosta”, dizia ele nos anos 90 enquanto a torcida estava vibrando e a Rádio Globo trazia a emoção. “É gol é festa brasileira, é hora de alegria! Explode coração”. Identificação musicada extraída do samba-enredo da Rosas de Ouro, em 1988, que homenageava Paulo Machado de Carvalho, um símbolo da comunicação.
“Alô, alô! Que coisa bela é ver Rosas de Ouro brilhando na passarela” era o refrão daquele samba. Que coisa bela foi crescer ouvindo-o, Osmar, berrando sem gritar, sorrindo sem gargalhar, bambeando sem cair. Bom, bom, bom, muito bom de bola esse garoto que marcou gerações e que completou 70 anos neste domingo. Osmar Santos, você enche de lágrimas até hoje o coração desse povo. O grito sufocado de um povo há 40 anos e também hoje. Essa voz faz muita falta, palavras que freavam o funcionamento normal da razão. Só deixávamos fluir a emoção, a gente ia se envolvendo, vendo, volvendo. Quando via, estava envolvido numa arrancada do, do, do, do Peru, como você dizia.
Uma marca da vida brasileira está tatuada na memória afetiva de quem ama o futebol e na forma de mostrar o jogo sem a imagem. Osmar, você sabe disso porque é o Pai da Matéria, a gorduchinha hoje anda mais bonita e enfeitada, embora não receba mais o mesmo “pimba” dos seus tempos. Digamos que os craques de hoje pisam mais no tomate do que antigamente. Mesmo assim, ao ligar o rádio em mais de uma estação, é possível ver a sua marca nas nossas tentativas de ser algo próximo do que você foi. O tom alto, o ritmo acelerado de correr atrás da bola, as brincadeiras, a música... elementos que você trouxe ao mostrar à comunicação que não há empatia sem a língua dos bares, das avenidas, de gente que luta com a crista alta, muito alta, pela sua dignidade, e encontra no jogo e no rádio o lenitivo para suas dores.
Vida longa, Osmar. Obrigado por ser o nosso farol, nossa bússola! Como disse Oscar Ulisses quando fiz minha estreia na Rádio Globo: “Osmar que criou uma escola de narração e nos deu um legado que trazemos nesses 40 anos.” Fazer parte do time que leva o seu nome é a maior vitória da minha vida.
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