Nunca é tarde para recomeçar. É com esse lema que Jayme de Almeida, último técnico campeão nacional pelo Flamengo (Copa do Brasil 2013), toca a vida após a demissão recente do Rubro-negro e busca seguir a carreira de treinador longe das suas raízes.
Aos 65 anos, o veterano diz ter força para recomeçar. Jayme não se imagina longe do futebol e tenta escrever uma história diferente daquela de quatro anos atrás, quando foi dispensado pelo Flamengo e não conseguiu um clube para dirigir. Na ocasião, ele acabou voltando em 2015 para ser auxiliar da comissão técnica permanente.
Em entrevista ao UOL Esporte, o treinador virou a "página Flamengo" da carreira e deixou claro que brigará para que a idade não seja um problema na sequência da trajetória. Jayme descartou o racismo como um obstáculo para isso e disse acreditar que a ligação com o Rubro-negro o atrapalha em muitos momentos. Ainda assim, mantém o sonho vivo, como se fosse um garoto à espera da primeira oportunidade no futebol.
Durante cerca de uma hora de conversa, Jayme de Almeida também comentou sobre as falhas nas categorias de base dos clubes, dos jogadores milionários que não dominam os fundamentos e do vestiário do Flamengo entre 2013 e 2014.
Confira a entrevista com Jayme de Almeida:
UOL Esporte - Como é o processo de recomeçar a carreira de técnico aos 65 anos?
Jayme de Almeida: Não vejo um grande problema na idade. Me sinto bem e saudável. Estou motivado para continuar a minha trajetória no esporte. Tive o privilégio de trabalhar em um grande clube como o Flamengo. Estou atualizado e tenho experiência. Isso é muito importante. Sei que, hoje em dia, existe um preconceito por conta da questão da idade. Só que encaro isso para ter novamente a oportunidade de mostrar o meu trabalho como técnico de futebol.
UOL Esporte - Você saiu do Flamengo em 2014 com os títulos da Copa do Brasil e do Campeonato Carioca. Por que a carreira de técnico não continuou ali? O que deu errado? Lembro que você chegou a se relacionar com um empresário para seguir a carreira.
Jayme de Almeida: Tive três sondagens, mas não passou disso. Não sei dizer por qual razão não deu certo. A maioria dos técnicos sempre consegue um clube para trabalhar. Infelizmente, não aconteceu no meu caso. Só que não me arrependo de nada que fiz depois que saí do Flamengo. Procurei me aliar ao empresário, o que é fundamental no futebol. A minha preocupação nunca foi buscar um clube excepcional. Trabalhei em equipes juvenis, fui técnico do CFZ (Clube de Futebol Zico), Iraty, sempre com resultados maravilhosos. Fui campeão na Desportiva Ferroviária. A minha história é bacana no esporte. Não existe isso de que só posso treinar Flamengo, Corinthians, Palmeiras...
UOL Esporte - Concorda que hoje é mais difícil continuar a carreira de técnico do que há quatro anos? Em 2014, você estava em alta depois dos títulos no Flamengo e não conseguiu. Acabou voltando ao clube para ser auxiliar. Muitas pessoas ainda o enxergam nessa condição. O que falar para quem pensa assim?
Jayme de Almeida: Eu digo que tenho bastante experiência e conheço bem o futebol. Estou atualizado. Sem querer ser prepotente, mas tenho todas as condições de trabalhar em qualquer clube. Tenho história, valores e sempre fiz um trabalho correto. A vida que levei até hoje prova isso. Tenho a certeza de que continuarei no esporte. Essa é a minha ideia.
UOL Esporte - O Flamengo proporcionou muita coisa boa na sua carreira. Por outro lado, tem quem veja apenas o "Jayme do Flamengo". É outro obstáculo para continuar?
Jayme de Almeida: Isso realmente existe. A ligação com o Flamengo atrapalha um pouco no sentido de procurar outros espaços. Aqui no Rio é praticamente impossível, apesar de ser respeitado pelos torcedores dos outros clubes. Sei que essa marca existe. Tem quem considere que ainda estou no Flamengo. Me param aqui perto de casa e falam: "Agora está bom lá, Jayme! Vamos ser campeões! [risos]". Nem falo nada na maioria das vezes, lido bem com isso.
UOL Esporte - Podemos dizer que essa página do Flamengo foi virada na sua carreira?
Jayme de Almeida: Virou. Sou torcedor do Flamengo, criado na Gávea e o meu pai também jogou lá. Só que tenho vivido tranquilo. Não é em razão de ter saído do clube que torcerei pelo mal, para que a diretoria se dane. Tenho muito respeito pelo clube, principalmente pela torcida. Sempre fui bem tratado e tenho um monte de amigos lá. Quero que eles sejam bastante felizes e também quero ser feliz não estando mais lá.
UOL Esporte - Muitos clubes preferem profissionais mais novos. Volta e meia é dito que os técnicos antigos estão ultrapassados. É um temor em meio ao desejo de seguir a carreira?
Jayme de Almeida: Muita gente pensa assim mesmo. Mas também tem gente que está muito bem no mercado. O futebol muda muito pouco em relação aos conceitos, mas hoje em dia muitas palavras novas são utilizadas. Não é errado, só soa estranho em muitos casos. Isso não quer dizer que eu seja pior ou melhor. O importante é o time jogar bem. A competência não se vê nisso, se vê no trabalho que cada um faz. Não se é melhor por falar entrelinhas, linha baixa, linha alta, marcação isso, aquilo. A questão não pode ser avaliada por isso. É muito raso.
UOL Esporte - Você e o Andrade conquistaram os dois últimos títulos nacionais do Flamengo e ainda não conseguiram uma sequência na carreira. O Zé Ricardo, por outro lado, conseguiu. Como isso pode ser explicado?
Jayme de Almeida: Eu já fiz esse questionamento e não sei explicar. O falecido Carlinhos era a mesma coisa. Era campeão no Flamengo e depois não trabalhava. Estou lutando para que isso não aconteça comigo. Não tenho como definir. Já foi muito falado em racismo, mas não acredito. Existe racismo no Brasil, porém, comigo nunca aconteceu. Acho que é muito mais pela ligação com o Flamengo do que por racismo. O Andrade tem competência, o Carlinhos tinha, eu tenho. Quem perde mais é o futebol brasileiro. Essas pessoas têm uma história bonita no futebol. A experiência vale muito. Pode colocar a garotada para trabalhar, mas tem espaço para quem já viveu muita coisa.
UOL Esporte - Você falou sobre racismo e existem diversas campanhas em relação a isso. São poucos os técnicos negros em atividade no futebol brasileiro. Jair Ventura, Roger Machado... Apesar de ter dito não sofrer por isso, o cenário aponta para algo diferente, não?
Jayme de Almeida: É o cenário do nosso país, mas não vi nada comigo em relação a isso. Você tem muitos funcionários negros nas comissões técnicas, mas os treinadores são realmente poucos. Nunca vi um caso próximo, mas que o preconceito existe no Brasil é um fato. As pessoas fingem que não existe, só que é assim.
UOL Esporte - O que o deixa irritado no futebol de hoje? Existe algo que você precise passar por cima para voltar a trabalhar?
Jayme de Almeida: Me irrita a falta de fundamentos no futebol. O jogador não treina e nem trabalha mais isso. Vi de perto no Flamengo. São sempre os trabalhos modernos em campo reduzido, mas ninguém trabalha a parte técnica do esporte. Os garotos da base não sabem cabecear, os zagueiros não sabem. Percebi muito isso. É o que sempre quis fazer diferente e sempre farei. É péssimo para o futuro do futebol brasileiro. Me deixa triste. Tem jogador muito bem pago que não tem fundamento atuando em clube grande. O Zico batia muita falta, é meu amigo. Ele tem o dom para isso, só que treinou absurdamente para que a qualidade não caísse. Em 2010, teve um menino no Flamengo que não sabia cabecear jogando no profissional do clube. Eu era auxiliar do Vanderlei Luxemburgo. Fomos treinar cruzamentos e finalizações. Percebi o fato de retardar algumas jogadas e falei para atacar a bola. Ele me confessou que não sabia cabecear e começou no Flamengo com 13 anos. Também não sabia finalizar de perna esquerda. Como pode isso? Em cinco anos, naquela época, nada foi passado para ele. Foi mal formado. Fica cada vez mais difícil corrigir. Saber os fundamentos do esporte é imprescindível. A coisa não flui assim. Isso precisa ser ensinado lá atrás. No profissional já entra a questão do empresário, o mimo, os salários astronômicos. Muda demais o patamar. Mas os caras podem e devem ser cobrados. O Cristiano Ronaldo treina para caramba. Por que esses caras não podem treinar? Ninguém vence no esporte só acumulando alguns milhões.
UOL Esporte - E o tal "ganhar o vestiário"? Nos bastidores do Flamengo dizem que foi o seu segredo para a conquista da Copa do Brasil em 2013. "Perder o vestiário" também foi o que causou a demissão em 2014?
Jayme de Almeida: Você ganha o vestiário quando entra e o time começa a vencer. Seria mandado embora se não ganhasse. É simples. Só ganhei o vestiário porque fui efetivado e empatei com o Botafogo no primeiro jogo da Copa do Brasil. No domingo seguinte, ganhamos do Criciúma. Depois, eliminamos o Botafogo. O time acreditou. Esse foi o segredo, como é o segredo quase sempre no futebol. A coisa funciona assim. Não sou mais do que ninguém, mas conhecia bem o Flamengo. Sabia que precisávamos da torcida. Se você não traz a torcida contigo, não adianta. Time sem correr não roda no Flamengo, ainda que tenha valores técnicos. E na questão da demissão sabia que um dia a coisa se perderia. O Flamengo tem a necessidade de ter um técnico famoso. Essa coisa de ser o "maior clube do mundo". Não ganha, manda embora. Sabia que cairia depois de perder a classificação na Libertadores. Só os resultados que me sustentavam. É assim com qualquer auxiliar, técnico efetivado, interino. O cara nessa condição lida com a sombra diária de um técnico de nome.
UOL Esporte - O que pretende fazer se o projeto de voltar a trabalhar como técnico não der certo?
Jayme de Almeida: Só paro se o futebol fechar a porta na minha cara. Se isso acontecer, terei que procurar outra coisa. Pretendo seguir no futebol e no esporte. Tenho muita coisa ainda para dar e receber. Estou insistindo nisso e espero conseguir. Gosto do que faço e acho que trabalho bem. Serei ainda mais humilde para bater na porta de alguns clubes e fazer o meu trabalho da melhor forma.
UOL Esporte - E voltar ao Flamengo no futuro?
Jayme de Almeida: Não posso dizer que não. Ninguém sabe o dia de amanhã. Não foi a primeira vez que saí do Flamengo. Essa foi a quinta ocasião. Sempre saí de uma forma bacana, jamais direi que não. Só que agora chegou o momento de ver outra coisa. O meu sonho é seguir no futebol, de preferência como técnico. Mas existe a possibilidade de ser gerente, auxiliar, trabalhar no departamento amador. Sempre fiz muito bem a transição entre juniores e profissional. Vamos ver o que o futuro reserva. Estou aberto.
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