A dimensão de ter Maguila ao meu lado e vê-lo soltar um choro curto e alto de gratidão por tudo o que meu avô fez por ele e pelo boxe, foi como ter o apoio de Mickey Mouse em um momento difícil como esse

A dimensão de ter Maguila ao meu lado e vê-lo soltar um choro curto e alto de gratidão por tudo o que meu avô fez por ele e pelo boxe, foi como ter o apoio de Mickey Mouse em um momento difícil como esse

* Paulo do Valle é jornalista da Rádio Bandeirantes de Campinas/SP e neto do narrador Luciano do Valle. Ele permitiu a reprodução do seu texto no portal Terceiro Tempo e comanda o blog Valle Tudo (clique aqui e conheça)

Foi assim, do nada.

Enquanto o GPS tentava me dar um rumo, a notícia da morte do meu avô me desnorteou, passando por cima das intenções da moça que me guiava por Santa Bárbara d’Oeste, através do meu celular.

A ligação para a fonte segura (vulgo mãe) e a confirmação de que aquilo realmente tinha acontecido.

E foi assim, perdido pelas ruas, que eu soube da morte do meu norte, o meu vô.

Vô gol. A primeira referência.

E na fita da Copa de 94, assistida incessantemente no videocassete… VAMO VÊ O BAGGIO, VAMO VÊ O BAGGIO, VAMO VÊ O BAGGIO, VAMO VÊ O BAGGIO… PRA FORA! BRASIL CAMPEÃO DO MUNDO!!! … foi onde percebi que o vô gol não era apenas um avô, era um mito.

Um mito chamado Luciano do Valle.Ele nos deixou. Como quem protesta morrendo. Indo trabalhar. Poderia ser no ônibus, ao passar pela Avenida da Saudade, mas foi dentro de um avião, onde viveu grande parte da sua vida. Voando. Jogos e mais jogos. Uma escolha de vida. Viveu da voz, da emoção.

Luciano do Valle e Paulo do Valle, talvez a única foto dos dois juntos

Era só mais um dia na rotina do meu avô, esse simples e nobre trabalhador. Iria narrar no domingo de Páscoa Atlético-MG X Corinthians, jogo válido pela rodada de abertura de mais um Campeonato Brasileiro, que em 2014 começa de forma melancólica, não só pela morte de um ícone do esporte, mas por toda bagunça instaurada nos últimos meses.

Morreu triste e desacreditado ao ver o futebol e outras modalidades em mãos erradas. Por nunca ter gostado de política, ignorou cargos que a sua competência e visão mereciam. Quem saiu perdendo fomos nós. Pois Luciano sempre enxergou além. Fez a diferença para o bem e evolução de tudo aquilo em que ousou botar a mão e empunhar a voz.

O futebol atual entristecia-o. Torcer? Apenas pro jogo terminar. Era o que me confidenciava quando nos falávamos.

Em tempos de Bom Senso FC e black blocs, o melhor protesto contra tudo isso que estamos vendo e nos envergonhando com o nosso futebol, foi o de Luciano, que preferiu morrer.

E por que não depois da Copa? Nos privar da sua emoção? E a final no maraca!? Porra, vô!

O comandante da nave morreu voando. Logo o comandante! E como fica toda essa
tripulação de milhões de brasileiros?

No inconsciente, a sensação de que Luciano do Valle não deixou apenas 10 netos, e sim milhões. Um dia de homenagens, um dia de luto.

No jogo em que trabalharia, um 0 x 0 e o silêncio no ar sem a presença de sua voz. Galo e Timão souberam respeitar o primeiro domingo sem o meu avô.

E pensar que eu usei preto quase a semana inteira sem saber.

E pensar que na sexta-feira santa, em uma estréia de série B as dez horas da noite, eu fiz uma das melhores transmissões desde que cheguei na Bandeirantes Campinas há quase 5 meses.

Trabalhando, contra tudo e contra todos, em uma madrugada de sexta-feira santa. Assim como ele faria.

E como o tempo passa. Parece ontem que liguei pra contar que agora também éramos da mesma família Bandeirantes.

Ele me contou sobre um jantar privado que daria em São Paulo, quase que secreto, com a presença de Pelé. Segundo ele, um jantar de agradecimento aos que fizeram parte de sua trajetória.

Me contava da vontade de fazer uma transmissão comigo. Sempre com a certeza de que aconteceria mais cedo ou mais tarde.


Hoje quando cheguei próximo dele, que vestia seu uniforme da Bandeirantes, a primeira coisa que veio em mente foi a não realização do sonho de fazermos uma transmissão esportiva juntos. Escorreu pelas mãos, mas o gosto amargo de saber que esse sonho nunca irá se realizar, me fez cair aos prantos. Um sentimento de débito irreparável.

Quando abracei minha tia, o primeiro alívio: ” Vamos escrever o livro dele juntos?” . A chance de quitar o débito apareceu rápido no horizonte sombrio de um velório.

Um velório que começou com o ex-jogador e comentarista Neto desolado próximo ao caixão. Fora da família, foi o que mais demonstrou desespero ao perder ” quase que um pai “.

EU NUNCA DEIXEI DE ABRIR UM COPO D’ÁGUA PRA ELE DURANTE AS TRANSMISSÕES. A frase que moeu meu coração, dita pelo companheiro de transmissões do meu avô, há 10 anos.

Um choro de quem, assim como eu, perdia uma referência.

Todos perdemos. O choro da minha mãe, de quem diz: ” eu avisei, mas não venha dizer que eu já sabia! ” , reflete um Luciano fora do mito. O Luciano da família. Com virtudes e defeitos de um homem comum. Acertos e erros que geram consequências que nos trazem até aqui.

Em nossos encontros nunca deixamos de falar dele. De como estava “bem”, “alegrinho”, “triste” e até “muito mal”, mas sempre ali.

Minha mãe o conhecia como poucos. Nela eu vi o choro de filha desesperada, que neste domingo eternizou a gratidão pelo pai, que foi um mito.

O mito capaz de ir do céu… CAIU O ALAMBRADO! O BRASIL BALANÇA. NA COBRANÇA DE ESCANTEIO RONALDO, O ETERNO FENOMENO! METEU DE CABEÇA LÁ DENTRO. DEUS EXISTE! DEUS EXISTE! QUEM ACREDITA NELE SABE DISSO!

Ao inferno…

METEU ENTRE AS CANETAS, BOTOU ENTRE AS PERNAS DO KA-REM-BEU. E AÍ ELE DISSE: EU SOU O EDÍLSON. O CAPETA!

Sem perder a emoção e nos arrepiar até a alma.

E na despedida do gigante, tantos outros compareceram para dar um último tchau ao maior deles.

Mesmo em um dia triste como foi, o sentimento de orgulho e gratidão superaram a tristeza de perder o meu grande avô. Pois ele enfim atingiu a imortalidade de um mito,

um ídolo.

Ao morrer, provou que foi impossível nos deixar sem fazer um estardalhaço.
Seu velório foi um desfile de estrelas e homenagens, com todo o respeito que o momento deve. Mas para mero mortais como nós, a cena chega a brilhar os olhos.

Ver Neto, Hortência e Rui Chapéu (admito que me segurei para não pedir uma “selfie” com Rui em pleno velório), todos com sentimento de gratidão, me fez esquecer que eu estava perdendo um avô. Naquele momento eu ganhei um mito só pra mim.

Entre choros, orgulhos e pensamentos ” POR QUE NÃO DEPOIS DA COPA?”, o dia que enterramos o homem e ganhamos o mito, ficou marcado pela visita inesperada de Maguila.

Um ídolo de infância.

A dimensão de ter Maguila ao meu lado e vê-lo soltar um choro curto e alto de gratidão por tudo o que meu avô fez por ele e pelo boxe, foi como ter o apoio de Mickey Mouse em um momento difícil como esse.

Personagens de uma vida, de uma infância e de quem eu me tornei.
Um aperto no coração de ver aquele gigante debilitado, mal conseguindo se expressar ou andar sozinho (somado ao medo de tomar um jab de esquerda), que prestava sua última reverência ao mestre.

Quando me toquei do que estava acontecendo, minha única vontade foi acordar o mito e ressuscitar o homem, apenas para dizer: ” vô! O Maguila tá aqui, ele veio só por sua causa! Você tem dimensão de tudo isso que foi construído por você?
E Por que não depois da Copa?”

Valleu muito, vô!

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