Seria tolice e atentar contra o óbvio, negligenciar ou dizer algo contrário à drástica queda de rendimento do Paulo Henrique Ganso, principalmente se comparado ao primeiro semestre de 2010, quando me convenci que o mais brilhante daquele ótimo time santista era Ganso, e não Neymar. Raros são os jogadores que já esbanjaram tamanha elegância para jogar futebol, aquele rapaz alto, magro, canhoto, jogando em uma rotação que parecia extinta. Sua postura que, ao mesmo tempo, era altiva e clássica, se mostrou avassaladora aos apreciadores do jogo onde a bola corre mais do que os jogadores. O que dizer além de assumir que errei? O erro é tão retumbante que não há receio em assumÃ-lo, Neymar é indiscutivelmente melhor e mais completo.
Dos bons tempos de outrora, Ganso mantém a elegância e seu irretocável toque de bola. Entretanto, aquele jogador de 2010 não era "seulement finesse?, ou seja, somente uma maneira requintada de se jogar futebol, ele era preciso em chutes de fora da área, dosava e controlava a velocidade em que o embate se daria, não se omitia ao mostrar capacidade e coragem para ser decisivo; dois jogos emblemáticos ilustram essas caracterÃsticas: o último confronto contra o Santo André pela final do Campeonato Paulista (quem não se lembra de sua "rebeldia? ao se negar sair de campo) e o jogo de volta, contra o Grêmio, pela semifinal da Copa do Brasil.
Os motivos que impedem PH de novamente encantar os aficionados, talvez nem o próprio jogador os reconheça. São as seguidas lesões musculares e em seus joelhos, falta de ritmo, perdeu a confiança em si mesmo, os incontáveis dias de contenda com a direção santista o deixaram desmotivado e sem foco, ou seria uma parcela de cada um desses itens, que quando agrupadas sobre os ombros de Ganso lhe pesaram sobremaneira? Assistir suas partidas atuais é uma experiência estranha, aflitiva e comovente. Continua a não errar passes, sua visão de jogo é invejável, mas sempre que tenta algo mais incisivo, seja um chute de longa distância ou uma arrancada mano a mano com o defensor adversário, ele sumariamente sucumbe, parece que algo o trava e impede que suas pernas obedeçam a sua cabeça acima da média. Se há algo digno de alento é o levantamento feito pelo site da ESPN no domingo da semana passada, mostrando que PH Ganso "já igualou a melhor sequência que teve na carreira desde que subiu para o futebol profissional: o total de catorze jogos entre janeiro e o mesmo estágio do mês de março?.
Não quero redescobrir a pólvora e dar um veredicto sobre o que se passa com Ganso. Deixo tal tarefa para os simpósios de psicologia, fisioterapia, educação fÃsica e, principalmente, para os jornalistas esportivos das mesas redondas. Duvido que cheguem a alguma conclusão, como diria Fred Allen: " Uma comissão consiste de uma reunião de pessoas importantes que, sozinhas, não podem fazer nada, mas que, juntas, decidem que nada pode ser feito?... Nem compreendido.
Ganso é só um pretexto para algo que vem me intrigando, muito além da análise técnica de um jogador e de um esporte. O modo de vida Moderno-Ocidental nos fez paranóicos, tudo precisa ser rápido, eficiente, multiuso, producente e, de preferência, carismático. Alguns dias atrás, com atraso imperdoável de um ano, aluguei o filme "O artista? de Michel Hazanavicius; cheguei em casa e comecei assistÃ-lo acompanhado do meu avô, passados cinco minutos ele começou a questionar-me o porque daquele filme em preto e branco, ainda por cima mudo e sem cenas muito estimulantes, para completar me ironizou com os dizeres: "Você deveria devolver o filme na locadora e exigir o ressarcimento do dinheiro pago?. Meu avô, embutido da aflição insana de nossos tempos, não conseguiu acompanhar o filme. Não entro no mérito de gostar ou não de um filme, mas sim de não ver sentido nele pelo simples fato do mesmo não despertar emoções instantâneas. Mal sabe meu velho, que ele perdeu uma das obras cinematográficas mais delicadas e elegantes, uma antÃtese da contemporaneidade. A cena em que George Valentin (Jean Dujardin) é persuadido pelo seu cãozinho Jack a não se matar diante da derrocada do cinema mudo, deveria promover a primeira estatueta para um animal e mais uma de brinde para Dujardin.
Outro bom exemplo são os dois últimos fenômenos da internet: "gangnam style? e o "harlem shake?. O que os dois têm em comum? O ritmo é frenético, daqueles que até quem não gosta, disfarçadamente, balança os pés. Os protagonistas dos videoclipes, seja o divertido sul-coreano ou os malucos anônimos do harlem shake, dançam sem nenhuma sutileza, cheios de cores e de maneira desconexa, não se intimidando perante a iminência do ridÃculo.
Como o próprio mundo musical em sua faceta industrial Pop, não desperdiça chances de lucro, reconhecendo a existência de um considerável nicho (seja Indie, Grunge, Folk, Soul, rock progressivo, blues, Surf music) que exige algo minimamente sofisticado, ele também não se faz de rogado e oferece esse tipo de produto. Se analisarmos a indústria da música a titulo de exemplo, sem os chavões obssessionados e discursos anencefálicos de "anti-imperialismo?, notamos que coisas boas surgiram nos últimos tempos. Se não são virtuosos renascentistas tocando em porões, anticlÃmax que traria refrigério e mÃnima erudição a alma do insatisfeito intuitivo apelidado de underground, ao menos uma leva de talentos se rebela contra o receituário bem-sucedido do besteirol, figuras agradáveis e de qualidade nada desprezÃveis se destacam, tais como: Corinne Bailey Rae, Lana Del Rey, Damien Rice, Jamie Cullum, Nick Cave (melhor intérprete de Leonard Cohen), Lifehouse, Eddie Vedder (prefiro sua carreira solo a seus tempos de vocalista do Pearl Jam, a música "society?, trilha sonora do belÃssimo filme "Na natureza selvagem?, prova isso), o brilhante Ryan Byngham (um Tom Waits do Country) e, claro, minha eterna musa Norah Jones. Sem contar as duas sublimes que emanciparam dessa "nódoa? de alternativo para se tornaram super estrelas mundiais: Amy Winehouse e Adele.
Voltando ao futebol, se fizermos uma análise didática das três especialidades de meio campistas que povoam atualmente o futebol internacional, concluÃmos que PH Ganso não se enquadra em nenhuma delas e, assim como no entretenimento artÃstico, o Futebol atual demanda uma velocidade e aptidão a não fazer só o que se entende como vocacional ao sujeito. Vejamos:
VOLANTES DE CONTENÇÃO: Pelos menos nos times grandes europeus, são cada vez mais questionados, o futebol parece não comportar mais jogadores que se limitam ao desarme. Times da estatura de um Real Madrid não devem se contentar com Gravesen, quem não se lembra do monstro dinamarquês? Mas ainda podemos destacar alguns remanescentes: Scott Parker e Sandro (Tottenham); Lucas Leiva e Henderson (Liverpool); Obi Mikel e Romeu (Chelsea); Gargano (Inter de Milão); Ambrosini, Nigel de Jong e Flamini (Milan), Song (Barcelona), Toulalan (Malaga); Javi GarcÃa (Manchester City), etc.
VOLANTES CONTROLADORES DO JOGO: Não são volantes, nem armadores puros, ou são os dois ao mesmo tempo de maneira não protocolar. Ditam o ritmo, são grandes passadores e finalizadores. São dotados de inteligência não usual e de condição fÃsica exemplar para se movimentarem incansavelmente. Exemplos: Bastian Schweinsteiger e Toni Kross (Bayer de Munique); Montolivo (Milan); Vidal, Pirlo, Pogba e Marchisio (Juventus); Cabaye (Newcastle); Gökhan Inler (Napoli); Yaya Tóure (Manchester City); GuarÃn, apesar de atualmente jogar mais adiantado do que nos tempos de Porto (Inter de Milão); Wilshere (Arsenal); Fellaini (Everton); Ilkay Gündogan (Borussia Dortmund); Witsel (Zenit); João Moutinho (Porto), Verratti (Paris Saint-Germain). Não é necessário, mas para constar, os ótimos veteranos Lampard e Gerrard e os incomparáveis Xavi e Iniesta.
MEIAS ARMADORES: Cada vez mais participativos, não se sustentam por um ou dois brilharecos em um jogo, precisam recompor o sistema defensivo de sua equipe. É cada vez menor o intervalo entre o tempo de domÃnio da bola com a execução da jogada, caso contrário são atropelados por marcadores de preparo fÃsico absurdo. Podemos citar: Luka Modric e Ozil ( Real Madrid); David Silva ( Manchester City); Oscar e Juan Mata (Chelsea); Shinji Kagawa (Manchester United); Cazorla (Arsenal); Mario Götze (Borussia Dortmund); Pastore (Paris Saint-Germain); Holtby (Tottenham); Hamsik (Napoli), Isco (Málaga), etc.
Contemplando os nomes citados e suas respectivas funções, fica evidente que Ganso não tem o perfil de nenhuma delas, apesar de ter mais talento que alguns deles. O Ganso atual lembra mais o Riquelme dos últimos anos do que qualquer um destes jogadores, o que é uma pena. Ganso está no limbo, será um grande craque em má fase ou somente um bom jogador que prezou pela estética de seu jogo e teve seu auge muito cedo? Caso a resposta seja a segunda opção, pelo menos Ganso poderá dizer a seu filho: " Não fui o melhor, mas poucos tiveram um futebol mais vistoso do que o meu. Sobre mim pesou o estigma de Messias do futebol romântico?.
Enquanto não há uma resposta clara e definitiva, de modo similar a Ulisses e seus marinheiros navegando próximos a Ilha de Capri, continuamos entorpecidos e amarrados perante o canto da sereia, ainda que esta cantoria por ninguém tenha sido ouvida nos últimos dois anos, pelo menos não da boca, ou melhor, dos pés da sereia Paulo Henrique.
Imagem: CowboySL