Numa pequena praça, as poucas pessoas que se atreviam a andar o faziam de modo arrastado, deixando-se ouvir vez por outra o barulho de um chinelo raspando na calçada. Duas sorveterias era tudo o que lá havia. E era para elas que todos se encaminhavam.
Nos bancos da praça, cercados por árvores, uma única pessoa: um bêbado. Barbudo, cabeludo, segurava um pequeno saco de papel, deixando-se ver o gargalo de uma garrafa. Não estava sentado nem deitado. Corpo largado. Cabeça baixa, queixo batendo no peito.
Parei o carro num lugar qualquer da praça. Decidi tomar um sorvete. Escolhi a sorveteria que vendia aquele sorvete de máquina, tipo italiano. Da outra sorveteria ouvia-se a narração de um jogo numa estação de rádio qualquer, aliás, muito mal sintonizada. O jogo era do Palmeiras que, na época, por conta de uma grande verba láctea, havia montado um timaço com Edmundo, Rincón, Zinho, César Sampaio, Rivaldo e companhia. A narração ecoava pela praça com vários "ssss? e "xxxx?, tudo por causa da má sintonia.
Sentei-me sob a sombra de uma árvore cujas folhas estavam tão estáticas quanto os bancos. Tarde de muito sol e nenhum vento.
Só então percebi o bêbado no banco ao lado. Inerte. Nem parecia respirar. A impressão que dava era a de que ele sempre estivera ali e que o banco brotara do chão, por baixo dele, e depois fora se amoldando ao seu corpo.
Ele não estava ali como eu. Talvez estivesse em outra dimensão sonhando com um passado. Nada do que estava à sua volta tinha algum sentido. Nada o faria reagir. Nem o grito espontâneo de uma criança que cruzou a praça correndo, passando perto dele, causou qualquer movimento em algum músculo do seu corpo.
Por ele passaram direto palavras do tipo "cuidado, olha o bêbado!?, que a mãe da criança berrou de longe, correndo para salvar o seu rebento. A corrida da criança e o grito da mãe causaram o "vôo? de alguns pássaros [Hoje escreve-se voo, sem acento circunflexo no primeiro "o?. Porém, entende-se que seja um vôo antigo]. Também rápida foi a ação da mulher em pôr a criança no colo e se afastar dali. A mãe saiu de cena enquanto falava com a criança sobre os perigos de um tal homem do saco.
O jogo continuava sendo narrado para os bancos, árvores e pássaros; e era interrompido vez por outra por uma vinheta que indicava o tempo decorrido.
Um tempo que não contava para aquele homem ali largado. Um homem sem tempo e com pouco espaço.
Num dado momento a locução acelerou. Ouviu-se, então, num brevÃssimo espaço de tempo uma chiadeira que é a mescla da reação da torcida no estádio com a chiadeira da má sintonia do rádio, e o narrador, depois de uma rápida tomada de fôlego, iniciou um grito de gol. De quem seria o gol? Do Palmeiras? Do adversário? E quem teria marcado?
Normalmente o gol dos locutores de rádio tem de mais de 20 "ós?. Mas seja lá quantos "ós? tivesse o gol daquele locutor, quando ele mal havia pronunciado o "gê? e o primeiro "o?, o bêbado ressuscitou. Voltou à vida, vindo das profundezas de seu sono e de si mesmo. Ergueu a cabeça, sem mudar a posição do corpo nem largar o embrulho. Apenas levantou o braço e, com punho cerrado, gritou em tom altamente etÃlico:
? Gor*! Rincão!
Disse isso e desabou novamente para o mundo das trevas. Parecia, de certo modo, uma metalinguagem do momento em que na BÃblia lê-se que "Jesus, na cruz, deu um grito e expirou, pendendo a cabeça para o lado?.
Ninguém nas imediações daquela praça se manifestou. Esperou-se que o locutor, nas ondas mal sintonizadas daquele rádio, terminasse o seu agudo de Pavarotti.
? Goooo...oooolllll...(suspense) do Palmeiras... (mais suspense)... Rincón!
Só, então, ouvi o burburinho de algumas pessoas comentando. Umas estavam vibrando; outras, lamentando. Mas quem primeiro soube da notÃcia havia sido ele, o bêbado, que estava ali na praça sem estar de verdade.
Quem sabe, ao contrário do que pensei quando o vi, seu tempo fosse mais rápido do que o próprio tempo; e seu espaço fosse muito maior do que se pudesse imaginar. Talvez estivesse mesmo em outra dimensão, numa outra banda de conexão, noutra faixa de som muito mais avançada, e ? com toda certeza ? muito mais bem sintonizada que o rádio da sorveteria.
* gol em puro caipirês paulista
Magalhães Jr. ? o Maga
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