Perdi a inocência em meados da década de 1980. Foi num desses jogos esmaecidos pelo tempo, que mal sobrevivem aos anais do tabelão. Duelavam no Estádio Municipal Walter Ribeiro São Bento de Sorocaba e outra equipe interiorana, de cujas glórias não consigo mais me lembrar.
Desculpe-me os parênteses, mas você deve estar se perguntando, ó solitário leitor, que catso fazia eu em bancada tão prosaica. Não há nenhuma razão esotérica, prometo. Os jogos do São Bento eram um adendo dominical às temporadas que passava no sítio Rio Bonito, na divisa de Porto Feliz. Ponha-se na conta ao amor pelo futebol.
Pois bem, recupero o fio da meada. O estádio semi-vazio, dois ou três pinguços compartilhavam o indefectível amendoim com casca. Quando um se levanta, atrabiliário, cambaio, babando raiva, e despeja sua fúria em direção ao campo. "Cooooorvo! Morféeeeeetico!".
Nos anos 80, se bem me recordo, a vida era menos sofisticada e mais terna. O sotaque repuxado do arquibaldo vociferava o grau máximo dos vitupérios permitidos pela decência da época. No cimento ainda não se viam mulheres, bem entendido. Mas ouvidos infantis mereciam alguma compaixão dos estádios. Como se vê, a inocência de um garoto de dez anos tinha baixo valor de face.
"Cooooooooorvo!". O coro contaminara os espectadores. Em uníssono, homenageavam o juiz, embutido no seu figurino, tão indefectível como o amendoim com casca: o calção preto, as meias pretas e a camisa, de mangas longas, mesmo sob sol senegalês, igualmente preta.
Até aquele dia, o juiz me parecia mesmo um pobre coitado, deslocado da brincadeira, com seu uniforme contrastante e se esquivando da bola, como o diabo foge da cruz. Do alto da minha ignorância pueril, o corvo servia de mera figuração, sem cheirar nem feder.
O apodo tão certeiro, burilado pela sabedoria popular, caiu sobre mim como uma revelação de eureka. Percebi que aquele personagem de mau agouro, munido de um apito e da autoridade histriônica de um ditador de gabinete, ao mesmo tempo, manipulava um poder sem rival; ostentava um gosto duvidoso e participava de uma conspiração universal.
Passados mais de trinta anos, aquela descoberta capital se confirma a cada rodada do Brasileirão. Vejam bem: que não se coloquem palavras na minha boca. Não ponho em xeque a idoneidade da juizada, muito menos compro o argumento de deficiência técnica generalizada. Ao contrário. Todos eles, sem exceção, são mais honestos que a mulher de César e mais competentes que político em véspera de eleição.
O busílis é outro. O problema é que a juizada detesta futebol. Não sei se por despeito, frustração ou outros segredos freudianos, os árbitros demonstram uma ojeriza ao gol e ao jogo bem jogado. Toda vez que a bola se aproxima da casinha, as bocas tendem a tremer de nervoso e logo assopram o apito. Perigo-de-gol! Para eles, jogo bom é jogo morto; sem contra-ataques ou vantagens. Apreciam a bola pro mato e o bumba-meu-boi.
No conclave anual de que participam, ocultos em alguma sala secreta da CBF, os juízes lapidam à perfeição seus ardis. E, no final, felizes com o resultado, crocitam em bando, gargalhando da inocência de todos nós.
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Foto: Placar
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