ALEXANDRA FRANÇA
ESPECIAL PARA O UOL
Texto escrito pelo jornalista Adriano Wilkson a partir de entrevistas com Alexandra França, filha de Alex Alves. Publicado em 24 de novembro de 2017 (Arte: Natália Massela; Edição: Bruno Doro e Celso Paiva; Edição de vídeo: Marcio Komesu; Imagens: Samerson Gonçalves e arquivo pessoal; Reportagem: Adriano Wilkson).
No final dos anos 90, o baiano Alex Alves fez seu nome no futebol mineiro. Revelado pelo Vitória, ele chegou a Belo Horizonte para defender o Cruzeiro e rapidamente conquistou o carinho da torcida por seus gols importantes e suas comemorações inusitadas, que repetiam movimentos de capoeira. Vendido ao Hertha Berlim, chegou a marcar o "gol do ano" da Alemanha em 2000, ao chutar uma bola do meio-campo e encobrir o goleiro adversário.
Também jogou na Portuguesa, no Palmeiras, no Atlético-MG, no Vasco e em outros times menores. Morreu em novembro de 2012, vítima de um tipo raro de leucemia. Alexandra, sua única filha, tinha então 13 anos. Dias depois de completar 18, ela escreve uma carta contando ao pai como tem sido viver sem ele.
Meu aniversário de 18 anos foi lindo. Fiz uma festa com meus amigos da escola, com minha mãe, meus irmãos, com todas as pessoas que me ajudaram nesses últimos cinco anos. Meu namorado fez uma surpresa. Fico me perguntando o que você diria quando descobrisse que eu estou namorando. Faltou você. Você sempre faz falta.
Eu queria te dizer o que aconteceu desde aquele dia. Nós tínhamos acordado cedo, você tinha me levado para tomar café naquela lanchonete que eu gosto no shopping, e então fomos ao seu hotel. Você levou mais lanchinhos e passamos o dia por lá. Depois viemos para cá, para esse mesmo apartamento que está vazio hoje. Conversamos muito tempo na cozinha. Eu tinha 12 anos, não entendia muita coisa. Mas sabia que você estava doente. Achei que era gripe.
Você disse que eu ia precisar ser forte. Que você tinha me ensinado muitas coisas e que eu devia seguir em frente porque um dia você podia não estar mais aqui. Eu lembro disso. Se eu soubesse que essa seria nossa última vez juntos, eu juro que não tinha te deixado sair daqui.
Eu só fui entender o que era câncer muito tempo depois. Até hoje eu não sei falar o nome do tipo raro de leucemia que te tirou de mim. O que eu soube é que você descobriu a doença quando estava tentando voltar a jogar no Hertha Berlim. Como jogador de futebol você foi o ídolo de muita gente, principalmente da torcida do Cruzeiro, que se acostumou a te ver comemorar gols dando chutes de capoeira. Você jogava capoeira desde moleque.
"Alex Alves, o capoeirista". As pessoas ficam me dizendo sempre que descobrem de quem eu sou filha. Você fazia um gol e corria na direção da torcida. Jogador dá soco no ar ou escorrega no gramado ou faz uma dancinha. Você não. Você dava chutes de capoeira no ar. Às vezes você dava um salto mortal ou uma cambalhota, uma coisa maluca que só você mesmo podia fazer. Para você era fácil porque a capoeira estava no seu sangue. Eu imagino que esse gesto devia te conectar com as suas raízes lá na Bahia. Todo mundo já esperava: o gol e a capoeira. Esse era você.
Eu nunca consegui jogar capoeira. Você achou que eu seria menino e jogador de futebol, porque eu ficava chutando a barriga da minha mãe e isso, para vocês, era a prova de que vinha mais um atacante rápido e habilidoso por aí. Hoje eu admito que não entendo muito de futebol.
Mas você entendia. Foi vendido pelo Cruzeiro ao Hertha e fomos todos nós, eu, você e minha mãe, morar na Alemanha. Eu tinha uns três meses. Acho que foi a melhor fase da sua carreira. Hoje eu vejo os recortes de jornal de lá, os alemães enaltecendo os brasileiros que levavam samba ao futebol deles. Você está sempre sorrindo nessas fotos. O cabelo colorido, espetado em direção ao céu, as roupas meio bregas, o sorriso sempre debochado e alegre, mesmo nos momentos mais frios do ano.
Você odiava o frio. E amava a praia. Por isso resolveu voltar ao Brasil para jogar no Atlético-MG. Em Belo Horizonte fazia menos frio e, mesmo sem praia, era uma cidade que você já conhecia. Depois foi jogar em outros times pelo país. Até que resolveu voltar para a Europa. Fez exames para tentar um contrato com o Hertha e esses exames mostraram que você estava com câncer.
Minha mãe diz que você não queria acreditar. Você demorou para iniciar o tratamento. Não contou nada para ninguém. Imagino que deve ter sido muito difícil para um atleta como você descobrir que estava com essa doença terrível. Eu lembro de você correndo na praia, fazendo flexões, do seu corpo atlético que só alguém que tinha dedicado a maior parte da vida a um esporte poderia ter.
E devagar foi ficando fraco. Sempre evitou demonstrar essa fraqueza. Eu era criança e achei que tudo ia passar rápido. Você tinha se separado da minha mãe, mas sempre foi um pai presente.
Eu lembro dos textos que você me escrevia quando estava internado. Eu lembro dos vídeos que você fazia. Sempre usando bonés e chapéus para que eu não visse que seu cabelo estava caindo. Você era muito vaidoso. Eu sei porque eu também sou.
Descobriram que seu irmão poderia doar a medula óssea para substituir a sua e isso poderia ser a cura para a leucemia. O dia em que eu soube disso foi um dia muito feliz na minha vida. Pense em uma criança sabendo que tudo vai dar certo e que seu pai vai voltar para brincar com ela o dia inteiro.
O transplante foi marcado para o dia do meu aniversário de 13 anos. Minha mãe tinha feito uma pequena mobilização entre amigos seus para levantar um dinheiro para custear seu tratamento. É engraçado que você tenha sido um jogador famoso, tenha ganhado muito dinheiro, mas no fim da vida tenha precisado da ajuda dos amigos para se tratar. Você nunca foi apegado a dinheiro. Achava que dinheiro era para gastar mesmo. E gastou.
Eu lembro daquele meu aniversário até hoje. Estava aqui na sala desse mesmo apartamento quando alguém ligou para dizer que tinha dado tudo certo. A gente pulou, se abraçou. Você ia voltar. Mas nunca voltou.
Fiquei sabendo depois que seu corpo rejeitou a nova medula. Ficamos um tempo sem informações, mas você devia estar sofrendo. E devia estar impedindo que as notícias chegassem até nós.
Até que, em novembro, um dia eu acordei muito cedo. Eu nunca acordava cedo. Fui ao quarto da minha mãe e estranhei porque ela também estava acordada. O telefone dela tocou. Era um amigo nosso do Cruzeiro perguntando se aquilo era verdade. Minha mãe não sabia. Ela se virou e, enquanto eu dizia "o que foi, mãe, me conta o que foi", ela só respondia que não sabia, que não tinha certeza. Que eu não devia me desesperar.
Peguei me celular e tinha umas 500 mensagens de amigos me prestando solidariedade. Dizendo para eu ficar bem. Eu não queria ficar bem. Eu não queria acreditar. Até que eu vi a confirmação na tela do meu celular. Eu descobri que meu pai tinha morrido pelo Twitter. Abri o Facebook e escrevi um texto para você. Veio tudo na hora. A gente se comunicava muito por textos. Você adorava escrever, assim como eu. Comecei a receber muitas curtidas. Aí comecei a entender. Meu pai morreu.
Você morreu. E agora?
Pai, a gente tem tanta coisa em comum que eu às vezes penso que nós somos a mesma pessoa em dois corpos diferentes. Eu tenho um carinho muito grande por animais - o que eu adoro. Minha sobrancelha é igual à sua - o que eu odeio. Eu sei que você vai gostar de saber que, apesar de os primeiros anos depois da sua morte terem sido muito difíceis, hoje eu estou feliz. E orgulhosa de ser sua filha.
Você não ia querer que eu entrasse em depressão, então não entrei. Você não ia querer que eu ficasse trancada no meu quarto chorando, então eu saí do meu quarto e parei de chorar. Você ia querer que eu seguisse em frente, então estou seguindo. Eu lembro de você e fico pensando em todas as festas de aniversário da minha infância. Você estava sempre comigo.
No meu aniversário de um ano, eu fui de bailarina porque o tema era circo. No de dois eu fui de Minnie porque o tema era Disney. No de três eu fui de Narizinho, do Sítio do Pica-Pau Amarelo. No de quatro eu fui de Cinderela. No de cinco, de Hello Kitty. No de sete, eu me vesti de Bela, da Bela e a Fera. No de nove eu fui de Rouge porque estava na moda. No de onze fomos a um resort porque eu não gostava mais de festa.
No de 18 eu fui de mim mesma: Alexandra França Alves, porque sou filha da Nadya França, modelo e atriz, e do Alex Alves, jogador de futebol. O capoeirista.
E o meu ídolo.
Texto escrito pelo jornalista Adriano Wilkson a partir de entrevistas com Alexandra França, filha de Alex Alves
Publicado em 24 de novembro de 2017
Arte: Natália Massela; Edição: Bruno Doro e Celso Paiva; Edição de vídeo: Marcio Komesu; Imagens: Samerson Gonçalves e arquivo pessoal; Reportagem: Adriano Wilkson.