A seleção brasileira, bicampeã do mundo em 58/62, fracassara em 66, aquela geração mágica de craques envelhecera e ouvindo a voz da imprensa esportiva, sempre pessimista antes de copas, parecia que havíamos reassumido o velho "espírito de vira-latas?. Isto era o que se dizia antes da Copa do Mundo do México.
Na Copa, no entanto, o que se viu foi um show do time de Zagallo, comandado por Pelé e sob o ritmo de Gérson, o "canhotinha de ouro?, um verdadeiro monstro que assombrou a terra dos sombreros.
Gérson havia sido contratado pelo São Paulo no final de 1969, em plena fluência das eliminatórias, o tricolor o roubara do Botafogo numa bombástica e milionária aquisição que sacudira o país.
Além de Gérson, o "canhotinha de ouro?, e para delírio de nossa torcida, aportaram no Morumbi recém concluído outras estrelas de primeira grandeza.
Do Santos, para espanto geral do mundo futebolístico, veio Toninho Guerreiro, um dos maiores artilheiros da época, do Nacional de Montevidéu chegou Pablo Forlan, um lateral direito de raça incomparável, que também atuava na seleção uruguaia e, de quebra, do inimigo do Parque São Jorge chegou Édson, um volante e lateral-esquerdo esguio, calmo, experiente e clássico.
Dois campeões mundiais disputam a bola: Pedro Rocha, com a camisa tricolor, ganhou o título do Mundial Interclubes como jogador do Peñarol. Rivelino, com o uniforme alvinegro, foi o camisa 11 do tricampeonato mundial da Seleção Brasileira na Copa de 1970, no México.
Os rivais se assustaram, afinal o dinheiro do São Paulo nos anos precedentes era sempre reservado à construção do Morumbi, não se via há anos o "Mais Querido? ousar.
Eu e a minha geração de são-paulinos havíamos passado a infância assistindo aos espetáculos protagonizados pelos inimigos, éramos torcedores cabisbaixos e desesperançados, vivíamos das lendas da década de 40 e dos fantasmas do time de 57, que batera o Corinthians na final do Campeonato Paulista daquele ano por 3x1, sob a batuta de Zizinho e na cadência do mago Canhoteiro.
Gérson, Toninho Guerreiro, Forlan e Édson Cegonha vinham, afinal, socorrer o legendário e estóico Roberto Dias, nosso único craque e uma legenda sem louros e sem coroa pois o São Paulo, desde que Dias fizera a sua primeira apresentação com a camisa do clube, jamais ganhara um título de peso, um Campeonato Paulista ou um Rio-São Paulo, certames que, até então, eram o objeto de desejo dos torcedores.
O Rio-São Paulo transformara-se em competição nacional, a partir de 69 disputar-se-ia a "Taça de Prata?, apelidada de "Robertão?. Foi para jogar o "Robertão?, depois da desilusão de mais um Campeonato Paulista, que haviam chegado Gérson, Toninho, Forlan e Édson.
Mas as eliminatórias da Copa atrapalharam o entrosamento dos novos craques. Gérson e Toninho Guerreiro foram convocados, Forlan tinha que defender a "Celeste?; os astros pouco jogaram juntos naquele ano.
Parecia mentira para os são-paulinos quando viam pela TV seus novos craques com a camisa da seleção, contavam-se no dedo os dias para que as eliminatórias e a própria Copa terminassem, propiciando assim a integração definitiva dos ídolos ao elenco.
Da esquerda para a direita, entrando em campo pelo São Paulo: Paulo Nani, Carlos Alberto Rodrigues e Pedro Rocha.
Terminada a Copa do Mundo de 1970, com a consagração definitiva de Gérson como craque para a eternidade, promoveram um jogo antológico no Maracanã, reunindo a Seleção Brasileira e a Seleção do Mundo, que vestiu a camisa da FIFA.
O Brasil assistiu àquele jogo em frente à TV, o Maracanã transbordou de gente para ver de perto os deuses do futebol.
Foi durante a transmissão desse espetáculo grandioso que eu ouvi, atônito e incrédulo, o narrador Geraldo José de Almeida anunciar que o São Paulo FC tinha interesse em contratar Pedro Rocha.
Pedro Virgílio Rocha Franchetti nascera em Salto, no Uruguai, aos 03/12/42 e era simplesmente o maior astro do futebol daquele país e um dos maiores craques de todo o globo terrestre.
Rocha ou "El Verdugo?, como o chamavam os uruguaios, jogava no Penarol, de Montevidéu e durante a década de 60 essa tradicionalíssima esquadra havia ganho quase tudo que disputara no Uruguai, na América do Sul e no mundo.
Tendo Rocha como líder e maestro, em dez anos o Penarol fora sete vezes Campeão Uruguaio, três vezes campeão da Copa Libertadores da América e duas vezes Campeão Mundial Inter-Clubes.
"El Verdugo? (o carrasco) disputara pelo Uruguai as Copas do Mundo de 66 e a de 70, então recém terminada e seu curriculum, por si só, dá a noção do que eu senti e do que sentiram milhares de são-paulinos quando ouviram Geraldo José de Almeida contar que o tricolor tinha interesse em sua contratação.
Ávidos por ver Gérson e companhia finalmente entrarem em campo juntos para defender o São Paulo em um campeonato inteiro, a idéia de ter Pedro Rocha transformava a avidez em estado de euforia plena e tirava o sono dos mais comedidos torcedores do São Paulo.
Mas Geraldo José de Almeida era um tricolor fanático e assumido. Estaria ele sonhando?
Naquela mesma noite, terminada a partida, o repórter de campo que trabalhava na transmissão foi entrevistar Pedro Rocha.
Em meio a algumas dezenas de microfones o astro confirmou a negociação com o tricolor e disse que faltava pouco para que tudo se acertasse. Eu vibrei como se estivesse comemorando um gol. Saltei da poltrona, abracei meu pai, meus olhos lacrimejaram. Com aquele time que se esboçava acabariam os sofrimentos, o São Paulo voltaria a ser grande.
Pedro Rocha, dias depois, desembarcava em Congonhas com festa e pompa. Ao saber do interesse do São Paulo, Pelé, o maior jogador da história do futebol em todos os tempos,
declarara que "El Verdugo? era um dos cinco maiores craques que ele havia visto jogar.
A declaração, vinda de quem vinha, enchia a torcida são-paulina de orgulho, São Paulo se engalanou, a cidade vestiu o manto das três cores para receber aquele semi-deus.
Rocha, lembro-me bem, iguais, foi levado ao Morumbi acompanhado de uma multidão de repórteres e de torcedores.
O treinamento foi interrompido, ainda me recordo da presença de Rocha no meio do campo, rodeado pelo elenco, cumprimentando o técnico Zezé Moreira ao lado do dirigente Henri Aidar, que discursou emocionado.
Pedro Rocha, para espanto de todos, principalmente de seus novos companheiros, vestia um terno bem cortado, usava uma gravata de seda, assemelhava-se a um príncipe em sua apresentação. Rocha era elegante, alto, tinha um porte que assombrava.
Logo o ídolo iniciou os treinamentos e estreou fora de forma dias depois contra o Flamengo pela "Taça de Prata?, em jogo que não teve Gérson e que perdemos por 2x0. Mas o resultado pouco importou.
Imediatamente se viu que o destino queria doravante recolocar o São Paulo em seu devido lugar depois de tantos anos de penúria. Pedro Rocha, ao tocar na bola pela primeira vez com a camisa mais linda do mundo encheu os olhos da platéia.
Seleção Brasileira de veteranos. Da esquerda para a direita vemos Lima, Pedro Rocha, João Mendes Toledo, Paraná e Paulo Borges
"El Verdugo? era um gênio, não olhava para a redonda, ela era sua antiga súdita, colava como imã aos seus pés, atendia a todos os seus doces apelos.
Rocha, já o disse tinha uma elegância ímpar. Gérson, o eterno e inesquecível "canhotinha? também era maravilhoso.
Gérson não errava um só passe, Gérson lançava bolas a 40m de distância e alcançava o companheiro, Gérson comandava o time, mas o fazia de modo inusitado, Gérson era quase corcunda, jogava meio abaixado, não cabeceava nenhuma bola e atuava ostensivamente, fazendo gestos, chamando a atenção para si.
Pedro Rocha, ao contrário, era a discrição em pessoa. Pedro era um maestro de orquestra filarmônica. Durante os anos de 1970/1971, com seus dois maestros, Gérson e Pedro Rocha, o São Paulo foi bi-campeão paulista e resgatou o prestígio perdido fixando os alicerces da estrutura que tem hoje, com a condição de maior clube da América do Sul.
Aquele esquadrão forjado em 1969 deu a Roberto Dias o justo prêmio de finalmente ver-se coroado com um título, ele que tanto o merecia, ele que nos carregou nas costas por tantos anos.
Enquanto Gérson permaneceu no São Paulo, entre 70/71 (69 não conta), Pedro Rocha vestiu a camisa de nº8, a de nº10 foi do "canhotinha?. Gérson não usava o pé direito para jogar futebol.
Rocha, embora também fosse meia-esquerda, olimpicamente acomodou-se na meia-direita, fazendo o terceiro homem de meio-campo e o fez sem nunca reclamar, embora tivesse gabarito e pleno direito de fazê-lo, na condição de um dos cinco maiores craques do mundo.
Gérson só jogava do lado esquerdo, Rocha armava pelo setor que a posição lhe obrigava, ocupava o lado direito da cancha e ia amiúde à frente. Rocha era visto constantemente na área com sua fleuma, cabeceava como poucos, lançava quando estava atrás, tinha um chute mortal, batia de longe, era ambidestro, surpreendia os marcadores.
Quando Gérson partiu para o Fluminense, "El Verdugo? tomou posse da camisa 10 e seu futebol ainda mais floresceu. Na condição de único armador do time, Pedro Rocha tomou posse do meio campo e era bonito ver os duelos que travava naquela faixa do gramado com Rivellino, com Dirceu Lopes e principalmente com Ademir da Guia.
Por ocasião do "Choque-Rei? nada era mais gratificante do que ver Pedro Rocha de um lado, Ademir do outro.
De Da Guia, diziam seus detratores que era lento. Quanto a Don Pedro Rocha jamais se ouviu tal crítica. "El Verdugo? era clássico, porém ágil, armava e era letal, estava à frente e estava atrás, tanto podia bater uma falta ou um pênalti quanto aparecer entre os beques para cabecear a bola do jogo.
Pedro Rocha foi um jogador completo. Rocha foi o único craque remanescente da máquina de 70/71, ele comandou o time nos anos seguintes, anos de reformulação que forjaram Muricy, Zé Carlos, Serginho e tantos outros. Em 1972 nosso herói foi o artilheiro do Campeonato Brasileiro, Rocha ainda conserva o privilégio de ter sido o único estrangeiro a conseguir esse feito.
A maior tristeza de Pedro Virgílio Rocha foi a de não ter podido dar ao São Paulo o título da Copa Libertadores da América, em 1974. Seria então uma façanha para o clube, não para Rocha, que naquela altura da carreira já havia vencido três vezes o certame sul-americano.
Na decisão contra o argentino Independiente, em três jogos, Rocha jogou demais no primeiro, fez um golaço e o time venceu por 2x1, de virada, no Pacaembu. Mas durante segundo confronto, em Avellaneda, Pedro Rocha desgraçadamente se contundiu. A contusão era grave e ele teve que sair.
O Tricolor que disputou a Taça de Prata, em 1970. Em pé: Gilberto Sorriso, Sérgio Valentim, Roberto Dias, Édson Cegonha, Jurandir e Forlan. Agachados: Paulo, Terto, Pedro Rocha, Gérson e Paraná. Foto enviada por Walter Roberto Peres e publicada na "Revista Manchete"
Sem a classe, a experiência e o carisma de Rocha perdemos por 2x0. Veio a negra, em campo neutro, no Estádio Nacional de Santiago do Chile.
Pedro não podia jogar. Ainda me lembro da natureza da contusão que ele tinha. A cápsula sinovial do tornozelo direito estava rompida e o local, inchadíssimo, doía terrivelmente.
Don Pedro viajou com a delegação, não abria mão de jogar e convenceu o médico, o saudoso Dr. Dalzel Freire Gaspar, a ministrar-lhe injeções de anestésico e assim entrou em campo, colocando em risco a carreira, dizendo que a garra estava acima da saúde.
Se Pedro Rocha estivesse em plena forma física venceríamos, não tenho dúvida, iguais. Quando os argentinos venciam por 1x0, com gol de Pavoni cobrando um pênalti inventado pelo árbitro peruano César Orozco, tivemos a chance de empatar.
Zé Carlos foi derrubado na área, o juiz assinalou a penalidade, mas Pedro Rocha, que sequer sentia o pé, anestesiado, não pode bater.
O próprio Zé Carlos cobrou e o goleiro Gay defendeu. Waldir Perez levou pedradas o tempo todo, nunca houve tanta pancadaria, eles bateram a vontade e o São Paulo perdeu.
Terminado o jogo Rocha chorou como criança, copiosamente, nos vestiários. Os argentinos eram seus fregueses, porém desta vez não dera.
A passagem mostra o brio deste maravilhoso craque que tinha uma consciência profissional invejável e que amava o São Paulo.
"El Verdugo? aliava raça com técnica. Com muita técnica. Para que bem se dimensione a riqueza de recursos técnicos desse gênio da bola que brilhou como diamante com o manto tricolor, enquanto escrevo estas modestas linhas minha memória se aguça e o coração traz à retina "flashes? de sua carreira que acompanhei de perto.
Vejo com nitidez incomodativa um Pedro Rocha que bate uma falta totalmente sem ângulo no Morumbi lotado em uma noite perdida na história. O goleiro adversário é Gainete, o adversário é o forte Internacional de Porto Alegre.
A bola está colocada do lado esquerdo do nosso ataque, a três, quatro metros da linha de fundo. Todos esperam um cruzamento, há congestionamento na área.
Rocha, no entanto, engana o mundo e foge do óbvio, a genialidade não admite o óbvio. E Pedro surpreende: com um leve toque de pé direito tira da barreira e coloca a pelota no alto, entre o travessão e a trave direita do embasbacado goleiro. É gol do São Paulo.
Agora vejo Pedro Rocha bater uma falta em Leão. O jogo é um "Choque-Rei? feroz, vivido numa tarde fria de domingo no mesmo Morumbi.Já no final da partida o 0x0 mantém-se insistente. A falta foi ao lado da meia lua, lado esquerdo do ataque, Terto a sofreu. Rocha ajeita a bola, estou nas numeradas ao lado de meu pai e de um cunhado palmeirense.
Viro-me de costas para o lance e anuncio aos companheiros que quero apenas ouvir o grito da minha torcida. Meu cunhado treme, meu pai pede que eu não seque, é supersticioso. Segundos depois estou nos braços do "velho?, para o abraço tradicional, é gol, gol antológico, mais um gol de Pedro Rocha!
Finalmente outra recordação, são tantas, não pararia mais de escrever se quisesse descrevê-las todas: uma bola branca vem exatamente em minha direção, nas numeradas, a bola parece ter o destino da linha lateral do campo onde estou sentado, à distância.
Jogam São Paulo e Palmeiras, é o clássico mais acirrado dos anos 70. Atrás daquela bola vêm dois deuses, Pedro Virgílio Rocha e Ademir da Guia. Rocha toma a frente Ademir vem logo atrás, eles crescem, já os vejo de pertinho.
Vejam Pedro Rocha (de camisa amarela, ao centro) ao lado de vários amigos, muitos deles radialistas, do interior paulista.
A bola está saindo, vai sair, o "Divino?, matreiro, vai cercar apenas, provavelmente Rocha não vai evitar que ela saia, sairão juntos a bola e o Rocha pela lateral. Então "El Verdugo?, mágico, estica a longa perna esquerda, faz do pé um gancho e puxa a bola na linha.
A pelota dá uma volta pelo corpo de Ademir e cai do outro lado, onde Rocha já está depois de girar o corpo com um disco voador, consumando uma meia-lua alta, impossível, maravilhosa, que levanta o estádio em frenesi.
Pedro Virgílio Rocha atuou no São Paulo durante sete anos. Foram sete anos de pura arte, de magia, de elegância, de discrição, de dedicação, de técnica inigualável.
"El Verdugo? foi um dos maiores craques que já passaram pelo Morumbi. Tinha razão o rei do futebol quando incluiu Rocha entre os cinco maiores, em todos os tempos. Apaixonado pelo clube Pedro Rocha nunca mais tornou à terra natal.
Hoje Rocha está doente, recupera-se de um AVC, parece que os amigos o ajudam a se recompor, Pedro não foi aquinhoado pela fortuna, preferiu o São Paulo a jogar na milionária Europa. Não sei se o clube o ajuda, se não o faz deve fazê-lo, com a maior urgência.
Ainda há tempo para que o tricolor o ampare integralmente. É preciso retribuir a Pedro Rocha o carinho que ele teve por nós. É preciso aplaudir de joelhos as glórias que ele nos proporcionou.
Ave, "Verdugo?!
Em pé: Gilberto, Sérgio, Samuel, Teodoro, Arlindo e Forlan. Agachados: Ratinho, Terto, Zé Carlos, Rocha e Piau
Clique e conheça a página de Pedro Rocha na seção "Que Fim Levou?"
Dr. Catta-Preta é advogado e são-paulino
antoniocattapreta@yahoo.com.br
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