A GUERRA ENTRE OS CARTÉISQuando a bola rolar no Estádio Atanasio Girardot, o São Paulo de Muricy Ramalho terá 90 minutos para segurar um jogo que os colombianos já perderam.
Por mais que o Atlético Nacional consiga a combinação necessária para seguir adiante na Copa Sul-Americana, em busca da tão sonhada vaga para a Libertadores da América, o resultado será indiferente para os familiares de Andrés Escobar Saldarriaga.
Do ponto de vista moral, um placar incapaz de ser revertido.
Mas que, dentro do livro de estatísticas do velho Cartel de Medellín, nada mais representa do que uma carta isolada fora do baralho das milhares de vítimas descartadas no jogo pelo controle do narcotráfico mundial.
Dezenove anos depois, por trás do silêncio das arquibancadas, no luto do futebol, duas correntes buscam elucidar a morte do atleta, considerado na Colômbia o principal responsável pela eliminação da equipe sul-americana na Copa do Mundo de 1994.
O primeiro paradigma defende a tese de que o zagueiro assassinado em frente a uma boate da cidade de Medellín teria sido alvo de um torcedor enfurecido pelo erro cometido na derrota por 2 a 1 diante dos Estados Unidos.
Poucos acreditam na história.
O paradoxo contrapõe a tese de que o atleta teria causado grande prejuízo às bancas ilegais de apostas do Cartel, cuja hipótese é aceita e compartilhada no submundo do crime.
Entretanto, nas esquinas de Medellín, frente as hierarquias do antigo caporegime, quase que timidamente, o que se ouve dá a entender que o ex-jogador do Atlético Nacional acabou mesmo na mira de Pablo Emilio Escobar Gaviria.
Neste caso, dentro do que se considera uma questão de negócios, aos moldes sicilianos de Michael Corleone, o assassinato tornou-se mais um ajuste de contas do que propriamente parte de uma vingança infundada.
Basta dizer que em 1994, Pablo Escobar também tinha sua cabeça cotada no mercado da coca.
Seu cartel, fundado por Juan David Ochoa, faturava 60 milhões de dólares por mês.
A cocaína, negociada ilegalmente com os Estados Unidos, México, República Dominicana e Porto Rico gerou um coeficiente de 28 bilhões de dólares em caixa.
Dinheiro demais, na visão dos chefões de Cali, o cartel rival de Gilberto Rodríguez Orejuela e José Santacruz Londoño, que controlava 80% do tráfico da coca dos Estados Unidos.
A diferença gerou a indisposição entre as duas "Famiglias" e ficou conhecida como a Guerra dos Carteis, num jogo disputado entre as máfias de Cali e Medellín.
Talvez, esse tenha sido o principal motivo para o assassinato de Andrés Escobar Saldarriaga.
Mais, até, do que o gol contra marcado aos 34 minutos do segundo tempo na partida frente aos Estados Unidos.
Pablo Escobar era apaixonado por esporte.
Fazia corridas de motos em sua fazenda e, oficiosamente, teria sido um dos principais financiadores do Atlético Nacional, time do próprio zagueiro, durante a conquista da Libertadores da América de 1989.
A jogada despretensiosa, no lance do carrinho contra as próprias redes, deixou o líder do Cartel de Medellín desprestigiado.
Além de contribuir com a desclassificação da Colômbia justamente diante do principal consumidor de cocaína dos dois cartéis, o atleta tinha uma terrível coincidência estampada em sua camisa.
Dentro e fora da América, o jogador jamais foi conhecido como "Andrés" ou "Saldarriaga" e tudo o que o homem mais procurado pelos Estados Unidos na Colômbia não queria ter era o nome "Escobar" associado de forma pejorativa onde quer que fosse.
Naquela ínterim, Pablo Escobar era tido como um dos principais inimigos dos Estados Unidos e o gol contra de Andrés Escobar Saldarriaga, colocava em xeque, também, como se fosse uma pedra no tabuleiro de xadrez, a imagem de Medellín diante de Cali.
Por mais que o ex-zagueiro da Seleção Colombiana de Futebol jamais tenha feito parte do Cartel de Pablo Escobar, indiretamente, vestia a camisa de sua cidade natal com o nome de um dos homens mais procurados pelo FBI.
Indiscutivelmente, isso não lhe ajudou a sobreviver no momento em que se tornou alvo de chacota, descrédito e revolta de Cali a Medellín.
Se tivesse feito um gol em cima do América rival ou errado diante de qualquer outra seleção no mundo, provavelmente, estaria vivo, fora da lista de óbitos escrita entre os dois Cartéis.
Por esse pressuposto, se não foi assassinado por ordem de Pablo Escobar, Andrés pode, também, ter sido vítima de um ataque de Cali, como forma de retaliação ao chefe de Medellín.
Contudo, o que se sabe é que ele foi apenas mais um entre milhares de inocentes colombianos que pagaram com a própria vida pelo vício que afeta hoje, de acordo com o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo, 4,1 milhões de pessoas nos Estados Unidos e 2,8 milhões de usuários no Brasil.
O SANGUE DA COCAQuem vai a Cali, hoje, encontra uma cidade marcada pela história da guerra do narcotráfico.
Assim como em Medellín, a população vive - ainda que na mira das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - sem o mesmo medo dos anos 70, 80 e 90.
Por mais que as Farcs permaneçam atuantes, sobretudo na Rota do Tráfico, na Rodovia Pan-Americana, dentro da Colômbia, não há mais atentados financiados por grupos rivais.
A situação, porém, ainda é crítica.
O controle do tráfico está nas mãos de facções pertencentes as Farcs, enquanto os principais nomes de ambos os cartéis estão fora do jogo.
Quem não morreu está preso ou simplesmente desapareceu.
O combate ao tráfico é levado a sério tanto pela Colômbia quanto pelos Estados Unidos.
Uma regra geral, comum, que faz parte do cotidiano de cidadãos ilegais.
Cali tem atualmente 2.319.655 habitantes.
Quase duzentas mil pessoas a menos que Medellín.
No topo de seu cume, no ponto mais alto da cidade, três cruzes continuam fincadas de pé como se Jesus Cristo e os dois ladrões da Galileia tivessem passado por lá.
Metaforicamente, em cada uma das pontas estão as cruzes das vítimas que pertenciam aos próprios carteis de Cali e Medellín.
Enquanto no centro, também banhada em sangue, está a cruz que simboliza os civis que nada tinham a ver com a disputa das drogas e acabaram vítimas da luta pelo controle da cocaína.
Uma guerra que, inicialmente, foi travada, apenas entre as facções que comandavam os cartéis de Cali e Medellín, mas que, a partir de 1980, teve também a participação do próprio governo colombiano como combatente central da tríplice armada.
A partir daí, o sangue passou a derramar de forma indiscriminada entre os três poderes colombianos.
O estopim ocorreu em 27 de novembro de 1989 no voo 203 da Avianca.
O Boeing decolou de Bogotá às 7h11 com destino a Palmira.
Cinco minutos depois, uma bomba explodiu a 13 mil pés de altitude.
O avião ainda não estava totalmente pressurizado.
Mesmo assim, as máscaras de oxigênio caíram.
Em casos como esse os passageiros têm até 10 segundos para colocar os utensílios de emergência antes que as primeiras sequelas cerebrais apareçam no corpo.
A hipóxia, tida como a falta de oxigênio nas células, é a mais grave, mas, no voo 203, não chegou a ocorrer.
As investigações apontaram que o oxigênio da cabine contribuiu para a propagação quase que imediata do fogo até o tanque de combustível.
A segunda explosão desintegrou a aeronave matando no mesmo instante a tripulação e os passageiros.
Cento e uma pessoas morreram, incluindo dois norte-americanos e o cantor colombiano Gerardo Arellano.
Os destroços da aeronave caíram na cidade de Soacha.
A autoria do atentado foi atribuída a Pablo Escobar, chefe do Cartel de Medellín, que, aparentemente, teria o objetivo de matar César Gaviria, candidato à presidência da Colômbia.
Os investigadores trabalharam com a hipótese de que Escobar queria se vingar da morte de seu cunhado Mario Henao.
Mas a polícia jamais descartou a ideia de que o atentado tenha sido causado para matar um integrante do próprio Cartel de Medellín que iria depor nos Estados Unidos ou também por causa de outros dois membros do Cartel de Cali que estavam à bordo.
Seja qual for a explicação, é possível dizer que após a morte de Henao, o primeiro nome no escalão de Medellín abaixo de Pablo, um voo com um candidato à presidência da república, dois membros da Operação de Cali e um preso da Máfia de Medellín que poderia delatar a própria hierarquia nos Estados Unidos, em nenhuma hipótese poderia ser considerado seguro.
Principalmente na Colômbia, no auge da guerra do governo contra os cartéis.
O que não acontece atualmente.
Os aeroportos da Colômbia são vasculhados permanentemente pela polícia.
É impossível pisar no saguão de embarque sem ser revistado.
Como em Tel Aviv e Moscou, todas as malas passam pelos leitores de Raio-X antes do check in, logo na porta de entrada.
O combate ao narcotráfico tem sido intensificado desde então.
Na Colômbia, traficantes em membros das Farcs são considerados terroristas.
Em Ipiales, na fronteira com o Equador, um painel, em frente ao exército colombiano mostra a foto dos criminosos mais perigosos do país.
Todos são procurados pelo FBI.
O cartaz oferece recompensa milionária para quem divulgar informações sobre o paradeiro dos acusados.
Tudo é levado muito a sério e de forma sigilosa.
Ao fazer o registro da foto com o rosto dos foragidos, fui "convidado" por um dos soldados do exército que estavam à paisana a "conhecer" a prisão.
Não houve nenhum tipo de agressão.
A liberação do quartel só saiu depois que o serviço de inteligência colombiano checou as minhas credenciais de jornalista membro da imprensa internacional na Suíça.
O registro fotográfico teve de ser apagado, mas o print do vídeo ainda pode ser visto, conforme vigora no direito de liberdade de imprensa.
Apesar da melhora significativa em relação às décadas passadas, andar na Colômbia ainda requer muito cuidado.
O que não significa que a situação esteja pior do que no Brasil, cuja guerra entre policiais e bandidos se espalha por todo o país.
No fundo, colombianos e brasileiros, torcedores do Atlético Nacional e São Paulo, vivem no mesmo pedaço da América.
Um continente muito distante do que se espera de um modelo ideal.
Porém, fascinante, pela maneira como os povos se mostram felizes e esperançosos diante de tanto sangue e insegurança.
Tendo o futebol como uma boa atração do circo, com políticos na platéia que assistem aos trabalhadores em meio aos leões.
Não deixa de ser curioso.
Seguindo pela "Rota do Tráfico, o futebol por trás do Cartel de Medellín", a equipe de reportagem do Terceiro Tempo apresenta nesta quarta-feira as verdades e mentiras de Pablo Escobar.
Estaremos juntos na casa em que o Padrinho da Coca colombiano passou seus últimos dias antes de ser oficialmente assassinado pela polícia especial dos Estados Unidos.
Por fim, como pré-jogo que definirá o futuro do São Paulo nas semifinais da Copa Sul-Americana, conheceremos o estádio financiado por Pablo Escobar que recebeu a visita do Papa João Paulo II em 1986.
Uma ironia da história no jogo travado entre a Santidade e o próprio Diabo.






Fotos: Chico Santto/Portal TTImagem: @CowboySL